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“Ele se sentia inferior a ela”, diz magistrada, amiga de juíza vítima de feminicídio no Rio de Janeiro, que a define como discreta, respeitada e exemplar

Natanael Nunes Domingues terá de cumprir 30 anos de reclusão em regime inicial fechado. (Foto: Arquivo/Agência Brasil)

Ainda sob o choque de um assassinato brutal, cerca de cem familiares, colegas e amigos da juíza de Direito Viviane Vieira do Amaral, de 45 anos, estiveram no último sábado (26) no Cemitério da Penitência, no Caju, para a sua despedida. A magistrada foi morta a facadas por seu ex-marido, o engenheiro Paulo José Arronenzi, de 52 anos, na véspera de Natal, ao levar as três filhas deles, que têm entre 7 e 9 anos, para passar a data com o pai. As meninas, que agora estão sob a guarda da avó materna, assistiram ao crime. Ele foi preso em flagrante.

Discreta, respeitada e profissional exemplar, segundo seus colegas, Viviane manteve as ameaças e agressões que sofrera do ex-marido, com quem se casou em 2009, quase em segredo. Buscou ajuda da polícia e de seu núcleo familiar, chegou a andar acompanhada de escolta por dois meses, mas evitou afastar as crianças do pai. Amiga de Viviane, a também juíza Simone Nacif contou que não soube que a colega havia precisado de escolta.

“Ela foi vítima de misoginia. O ex-marido deveria se sentir inferior a ela”, disse Nacif. “Ela sempre foi inteligente, independente e dedicada à carreira e às filhas. Ela tinha um sorriso que a definia, além de ser engraçada e sensata. Logo que passou no concurso, ela comentou que se incomodava com os protocolos da magistratura, pois preferia que a chamassem de você. Mas entendia que eles eram necessários”, diz.

A juíza Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), afirmou que para ela, como mulher, o luto é complicado: “A notícia foi devastadora porque já tínhamos uma campanha forte no combate à violência contra a mulher. Fomos pegos de surpresa e estamos absolutamente sem chão”, diz.

Cortes nas costas

A violência e a crueldade do feminicídio ficaram ainda mais evidentes no laudo do exame de necropsia da magistrada. O documento mostra 16 cortes e perfurações a faca, quatro deles na cabeça, sendo três no rosto de Viviane.

Uma fonte que atua na investigação, sob responsabilidade da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), diz que, além do número alto de ferimentos a faca, Paulo José continuou golpeando a magistrada pelas costas, depois que ela caiu ao chão. Foram sete cortes na parte de trás do corpo.

O laudo revela ainda equimoses, ou seja, manchas arroxeadas pelo corpo, além de uma perfuração na boca. Os ferimentos no rosto de vítimas de feminicídios são comuns, segundo a delegada Sandra Ornellas, diretora do Departamento Geral de Polícia de Atendimento à Mulher (DGPAM) da Polícia Civil. Segundo ela, estudos sobre feminicídio mencionam os chamados gestos simbólicos.

“Na relação extremamente desigual, quando a vítima contesta o desejo do autor, a ideia é tirar a pessoa do mundo, não só a matando, mas a desfigurando, atingindo o que ela é, na forma em que ela se apresenta. Os ataques no rosto lembram o que a mulher fazia. A boca, por exemplo, por causa da fala. O que ela representa no seu ambiente”, disse a delegada. “A vítima, na verdade, ao dar fim à relação, está dizendo não àquele homem com seus valores machistas, que estão incorporados a ele. Para que ela não negue, ele precisa marcar a sua presença matando a mulher e a descaracterizando”, completou.

O psiquiatra forense e médico legista aposentado Talvane de Moraes destacou o ódio com que o agressor desferiu os golpes na ex-companheira: “A quantidade de ferimentos, 16 facadas, demonstra uma descarga de ódio muito grande, sem falar que quem usa uma arma branca, no caso, uma faca, é porque deseja que a pessoa sofra. A morte por esse instrumento não ocorre de imediato, a não ser que a pessoa seja atingida no coração. É cruel, pois o agressor assiste à agonia da vítima”.

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