Domingo, 02 de novembro de 2025
Por Redação O Sul | 1 de novembro de 2025
O recente encontro entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o bispo Samuel Ferreira, líder da Assembleia de Deus Madureira, deflagrou uma disputa que extrapolou as fronteiras da religiosidade e avançou sobre o mundano terreno da política. A reunião – acompanhada pela ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, e pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, um dos nomes cotados para ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) – foi interpretada pela oposição bolsonarista como um gesto de aproximação de Lula com o eleitorado evangélico. Se foi, o gesto é legítimo. Afinal, Lula é o presidente de todos os brasileiros e, ademais, o chefe de um Estado laico. Mas o que veio a seguir mostra o quanto certos líderes religiosos exploram a fé alheia como reles instrumento de obtenção de poder político.
O fato de um pastor orar com o presidente da República no Palácio do Planalto provocou uma reação furiosa da parte do segmento evangélico alinhado ao bolsonarismo. Em um vídeo publicado em suas redes sociais, o pastor Silas Malafaia, o mais estridente porta-voz desse neopentecostalismo hiperpolitizado, acusou Samuel Ferreira, ainda que indiretamente, de trair a “verdadeira fé cristã”. Aos berros, Malafaia afirmou que “um verdadeiro cristão não apoia Lula”, como se a ele coubesse definir os contornos da fé e determinar quem pode ou não manifestar suas predileções políticas. Como é típico desse cidadão, Malafaia reivindicou o monopólio da virtude e colocou a religião, mais uma vez, a serviço do projeto de poder que ele defende.
Outra a afetar indignação pelo encontro entre Lula e o bispo Samuel Ferreira foi Michelle Bolsonaro. Em tom cifrado, a ex-primeira-dama publicou versículos bíblicos nas redes sociais que evocam o conflito entre o “bem” e o “mal”. À luz de sua interpretação maniqueísta, orar com o presidente, sobretudo na presença de outro evangélico cotado para ser ministro do Supremo, equivale a firmar um pacto com o diabo. É irônico, para dizer o mínimo. Em dezembro de 2021, a mesma Michelle celebrou efusivamente a aprovação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para o STF, indicado pelo então presidente Jair Bolsonaro. A fé, naquele caso, servia como selo de legitimidade. Agora, a bênção virou maldição apenas porque o País, ora vejam, passou por uma democrática transição de poder. Nunca é demais lembrar que, em uma república democrática, a religião se circunscreve à vida privada; a política, à esfera pública.
A rusga entre os evangélicos expõe essa mixórdia promovida por lideranças que buscam transformar fiéis em eleitores cativos. O fenômeno não é novo, mas vem se agravando à medida que o campo evangélico se consolida como uma força social de grande peso eleitoral. O Censo 2022 do IBGE mostrou que cerca de 27% da população brasileira se identifica como evangélica. É natural, portanto, que um segmento dessa dimensão desperte o interesse de políticos que vivem de votos. O problema é quando um evangélico pretende falar em nome de todos os outros, como se formassem um bloco monolítico e suas consciências e visões de mundo fossem uniformes. Ou pior: quando um líder religioso se arvora em árbitro da fé, definindo o que significa ser um “verdadeiro cristão”.
A liberdade religiosa é um dos pilares da República. Mas, ao que parece, para alguns essa liberdade só é válida quando serve a seus interesses políticos. Esse uso instrumental da religião é um dos mais perversos traços da degradação política nacional. Ele subverte a objetividade do debate público, transforma o púlpito em palanque e corrompe a fé ao subordiná-la a desejos terrenos. Religiões prestam-se ao conforto espiritual, não devendo ser manipuladas como instrumento de segregação político-ideológica ou via de acesso ao poder institucional, no melhor cenário, ou ao enriquecimento pessoal, no pior.
É legítimo que Lula busque diálogo com todos os setores da sociedade, inclusive com as lideranças evangélicas, assim como é legítimo que essas lideranças apresentem suas preocupações e reivindicações ao governo federal. O que não é legítimo é instrumentalizar a fé alheia, interditar a oração ou desconjurar quem pensa ou professa fé diferente. (Opinião/Jornal O Estado de S. Paulo)