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Colunistas O futuro não será mais o que era

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Poeta francês Paul Valéry. foto: reprodução

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

Outro dia li uma história (onde?) que poderia ser o início de um romance, um mote para poesia ou um caso para se contar ao pé do fogo. Um homem de 25 anos, casado e com um filho pequeno, resolveu escalar uma montanha nevada. Subitamente, caiu uma avalanche sobre ele, sepultando-o sobre as toneladas de neve. A mulher, desesperada, amigos e guardas florestais esquadrinharam tudo em volta da subida da montanha. Nada. Passaram-se os anos. Muitos anos. O menino cresceu e, por volta dos 40 e tantos anos, resolveu esquiar na montanha, boa para descidas alucinantes.

Embaixo, feliz com sua façanha, viu um corpo aparecendo sob a neve que já derretia com o verão. Limpou a neve, puxou o corpo e, alucinado, viu que era seu pai, do qual tinha uma longínqua lembrança. Seu pai estava intacto. E deu-se o fato espantoso: ele tinha quase 50 anos e estava diante de seu pai com 20 e poucos. Ele contemplava a morte ao avesso – e o tempo andou para trás. Sempre achamos que a vida e o tempo fluem para um futuro qualquer, em uma linha reta. E essa linha tinha sido quebrada.

Onde estava o passado e onde estava o presente? Ele via o passado do pai, ali presente. Não era uma múmia nem o resto de um falecido. Era o pai, com roupa, ganchos de alpinista e os olhos congelados e abertos. Aos poucos, o tempo foi reaparecendo. E ele levou o pai para o cemitério e enterrou-o como um filho.

Escrevendo esta história, me lembrei daquele outro morto eterno, na Áustria, um homem pré-histórico, com arco e flecha, sob toneladas de neve durante cinco mil anos. Passaram os impérios, as civilizações antigas, os egípcios, gregos, romanos, as guerras mundiais, as pestes, as grandes conquistas, os belos e os horrendos momentos da humanidade – e aquele homenzinho ali, dormindo enquanto a história marchava sobre sua cabeça.

Hoje também há uma inversão do tempo. Melhor dizendo: o presente engoliu o passado e apagou o futuro. A ideia de futuro se apaga porque não há mais um lugar onde chegaremos, um dia. Há apenas um enorme presente, andando até o infinito. O futuro sempre foi imprevisível. O estranho é que agora está previsível demais: não pertence mais ao desejo dos homens – as coisas é que pensam nosso futuro. Elas têm vida própria. Como escreveu Paul Valéry nos anos 1920, o grande poeta e pensador que orienta este artigo: “O futuro não será mais o que era”. Frase irônica, profética e genial.

Essas duas histórias que contei acima me levaram a ler seu prefácio para as “Cartas Persas”, de Montesquieu, em que ele desenvolve a ideia de que as “coisas vagas“, imprecisas, tênues, são essenciais para o pensamento das sociedades de modo a criar o desejo, aí sim, de um futuro possível.

Valéry escreveu: “Que será de nós sem criações, fábulas, arte, mitos, crenças? Que será de nós sem o socorro do que não existe?” Está sendo criada uma “epi-natureza”, na qual o homem não mandará mais em nada, com projetos que fugirão sempre de seu controle. As coisas nos governarão, para o bem ou para o mal.

Desculpem se estou citando muito, mas, como escreveu Marx: “O capital cria não apenas objetos para o sujeito, mas também o sujeito para os objetos”. Um dia chegaremos ao tempo de uma “deliciosa reificação”, quando (quem sabe?) seremos felizes como “coisas”.

As velhas utopias, projetos sociais ou políticos estão irrealizáveis. Como planejar algo se as incertezas do mundo nos levam de volta ao congestionamento dos “fatos”. Sim, dos fatos erráticos e intempestivos. Valéry escreve: “A barbárie é feita apenas de fatos, por isso é necessário que a era da Ordem seja o império das ficções, do que não ‘é’ ainda (…) A Ordem exige a ação da presença das coisas ausentes. Daí resulta o equilíbrio dos instintos pelos ideais”.

Os “fatos” não se conjugam, são aleatórios. O pensamento ocidental tenta encontrar algo para explicar seu presente e futuro, alguma lógica reveladora do mundo, mas os “fatos“ se recusam a participar de qualquer processo. Vivemos uma História de “faits divers”. Estamos sendo arrojados a um tempo a-histórico. No futuro (!), seremos descritos como uma antiguidade composta de fatos trágicos ou ridículos – inexplicáveis. Qualquer esperança de síntese será impossível.

Como escreveu Baudrillard (tão desprezado pela Academia porque tinha muita imaginação): “Acabaram-se os universais; só temos hoje o singular e o mundial”.

E hoje vemos perplexos e amedrontados que o lixo que o mundo ocidental ignorou está voltando e sendo derramado sobre nós. O terrorismo do Oriente Médio é o assustador exemplo. Eles criam catástrofes isoladas para corroer nosso sonho de completude. É a lógica do terror: a inesperada chegada dos fatos da violência e da morte. Só produzem fatos. Os atentados buscam o incompreensível, o inimaginável.

Os nazistas queriam construir o tal milênio ariano, os comunas o paraíso social, mas os islâmicos fanáticos não querem construir nada. Já estão prontos. Já chegaram lá. Tudo que sempre fizemos tem o alvo na finalidade, no progresso. O Islã não quer isso. Quer o imóvel, a verdade incontestável.

O Islã não quer fazer parte da História – quer mesmo desmoralizá-la. Para eles, a História é uma mentira de infiéis. Eles odeiam o passado e, por isso, destroem cidades milenares e tesouros culturais para apagar quaisquer vestígios de outra época.

Enquanto isso, estamos encalacrados no presente, buscando certezas que não chegam. Queremos conclusões, soluções precisas. Toda a era moderna é uma busca contínua da precisão, um rumo que elimina tudo que é vago ou irracional para privilegiar o que é mensurável e verificável. A tecnociência talvez contribua para uma dúvida: ela é maravilhosa ou atemorizante?

Para Valéry, a antiga, a primitiva barbárie feita só de fatos não é menos perigosa do que a nova “barbárie” da ciência positiva, que restaura o domínio dos “fatos”, com potente e exata precisão. É uma nova barbárie. Voltamos a viver sob o domínio dos fatos, só que dos fatos científicos.

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

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