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A desconfiança no sistema eleitoral, impulsionada por Donald Trump, mesmo antes da votação, ameaça um dos pilares da democracia nos Estados Unidos

Comissão que investiga invasão do Capitólio intimou Trump para prestar depoimento. (Foto: Official White House Photo/Shealah Craighead)

Havia passado de 2 horas da manhã de 4 de novembro quando Donald Trump entrou em uma das salas de conferência da Casa Branca e anunciou: “Francamente, ganhamos esta eleição”. Nada na apuração parcial da disputa sugeria a vitória de ninguém, mas estava claro para seus assessores que Trump insistiria na estratégia anunciada meses antes – a tese que ficou conhecida como a “Grande Mentira”, uma espécie de delírio coletivo de que a eleição de 2020 havia sido fraudada em favor de Joe Biden para tirá-lo da presidência dos EUA.

As alegações de fraude foram sepultadas na Justiça, uma após a outra. No entanto, um ano depois, elas não apenas seguem vivas nos EUA, como alimentam o “trumpismo”, que domina o Partido Republicano, mesmo com a derrota do ex-presidente, e ameaça o futuro político do país.

Desde novembro do ano passado, pesquisas indicam que há uma parcela sólida da sociedade americana que acredita que o resultado de 2020, anunciado em 7 de novembro, após uma apuração arrastada, é ilegítimo. Em um dos levantamentos mais recentes, do instituto

Morning Consult em parceria com o site Politico, 35% dos eleitores registrados disseram que a eleição deveria ser anulada.

O resultado é reflexo da desconfiança dos republicanos no sistema eleitoral – a despeito de os setores da população que costumam votar em democratas serem, historicamente, serem os maiores alvos das investidas para limitar o direito ao voto nos EUA.

CREDIBILIDADE. Se em 2020 o ataque à integridade da eleição servia para Trump como uma justificativa por seu mau desempenho nas pesquisas, em 2021 tornou-se um álibi para o ex-presidente seguir na arena política e manter acesa a chama de uma possível candidatura em 2024. É consenso entre especialistas que a sobrevida da “Grande Mentira” até hoje desafia a credibilidade das próximas votações, a sustentação democrática e a ordem social dos EUA.

“Ele criou uma profunda desconfiança da sociedade americana no governo e, mais especificamente, no processo eleitoral. É um desafio fundamental para os princípios americanos, para o que é mais básico na democracia: a confiança de que você pode votar em alguém que te representará”, disse Michael Traugott, cientista político e professor da Universidade de Michigan.

Mas as acusações de fraude eleitoral feitas por Trump não se limitam mais à disputa de 2020. “Eu não acredito na integridade das eleições do Estado de Virgínia. Muitas coisas ruins aconteceram e estão acontecendo”, declarou Trump, na segunda-feira (1°), véspera da eleição para o governo estadual. A votação foi a primeira disputa local em que seu poder junto ao eleitorado republicano foi testado.

Dos eleitores democratas, 76% acreditam, com mais ou menos confiança, que as eleições legislativas de 2022 serão livres e justas. No grupo dos republicanos, apenas 48% pensam a mesma coisa. Mais da metade dos eleitores registrados nos EUA (entre republicanos, democratas e independentes) diz que votaria em candidatos ao Congresso que defendem uma investigação dos resultados eleitorais do ano passado.

“Há uma perspectiva de que as eleições para o Congresso e presidenciais sejam canceladas em 2022 e 2024”, afirma Jennifer Mccoy, professora de ciência política da Universidade do Estado da Geórgia e especialista em democracia e polarização. “Algumas das novas leis estaduais vão além da supressão de eleitores para realmente permitir que legislaturas partidárias, lideradas pelos republicanos, intervenham na administração eleitoral e cancelem a certificação do vencedor”, disse a especialista.

Sem uma justiça eleitoral centralizada, cada Estado americano organiza localmente seu sistema eleitoral. Neste ano, Estados como a Geórgia, que têm maioria republicana no Legislativo e, no ano passado, deram vitória a Biden, aprovaram leis que ampliam a esfera de influência partidária na certificação da eleição. “O destino de nosso sistema democrático dependerá desproporcionalmente dos tribunais nas contestações que surgirem entre as eleições”, afirma Traugott.

A multidão que frequenta os comícios de Trump, nos últimos três meses, passou a acreditar que as mentiras sobre a fraude na eleição de 2020 eram verdade, ainda que não haja nenhum lastro em fatos. A camiseta com a frase “Trump venceu” é quase um uniforme entre os participantes desses eventos.

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