No mês passado, uma história de violência contra a infância chocou o país: uma menina de 10 anos estava grávida, depois de vir sendo estuprada havia quatro anos por um tio. A Justiça autorizou o aborto (que nesse caso inclusive estava previsto em lei, por se tratar de estupro), mas o primeiro hospital se recusou a fazê-lo. Foi apenas na segunda tentativa que a interrupção legal da gravidez ocorreu.
Um grupo de conservadores protestou em frente ao hospital. Religiosos criticaram o aborto. O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o bispo Walmor Oliveira de Azevedo, publicou nota dizendo que a interrupção da gestação era “crime hediondo” e que a “a violência do aborto não se explica”.
A posição, contudo, não encontrou unanimidade no seio da Igreja Católica. Acostumada a ser uma voz dissonante, a freira Ivone Gebara, feminista, teóloga, filósofa e religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, fez circular um artigo em que condenou aqueles que atiraram pedras contra o aborto realizado. Enfatizando que a questão foi tratada como tema político e religioso, ela escreveu que “os incautos e ingênuos defensores da vida assim como os perversos políticos extremistas entram e alimentam o jogo político montado e armam uma nova polêmica em torno do aborto”.
“Em plena crise pandêmica da covid-19 onde diferentes tipos de manipulação política não faltam, enfrentamo-nos a uma outra perniciosa e mortal que se expressa em ‘amar mais ideias e princípios do que a frágil vida que temos’, ‘amar mais as leis religiosas caducas do que as dores reais que assolam meninas e mulheres’, ‘amar e defender mais interpretações sacrificiais da Bíblia do que a vida real e provisória’, ‘amar mais as vidas futuras do que as presentes’ e com isso condenar vítimas de estupros e acusar meninas, jovens e mulheres estupradas de infanticídio”, prosseguiu a religiosa.
Citando nominalmente o presidente da CNBB, ela se autointitula, no texto, uma “desobediente”. “Minha idade já não me permite o antigo respeito formal às autoridades civis, militares e eclesiásticas. Não posso calar diante de tantos fatos que me apavoram e por isso denuncio uma velha pandemia viral entre os humanos muito presente em nosso tempo, especialmente entre religiosos”, acrescentou.
Tal postura não é novidade na carreira de Gebara. Na edição de 6 de outubro de 1993 ela foi a entrevistada das Páginas Amarelas da revista Veja. “A mãe tem, sim, algum direito sobre a vida que ela carrega no útero. Se ela não tem condições psicológicas de enfrentar a gravidez, tem o direito de interrompê-la”, destacou a publicação, atribuindo as frases à freira. “Aborto não é pecado. O Evangelho não trata desse assunto.”
A repercussão custou-lhe uma punição do Vaticano. A religiosa foi condenada a um chamado “silêncio obsequioso” e se viu obrigada a sair do país. Foram dois anos sem dar aulas nem entrevistas. Mas nunca se retratou. E não mudou de opinião. Atualmente vivendo como eremita em um apartamento em São Paulo, segue ativa junto à mesma congregação religiosa a que pertence desde os 22 anos.
Aos 75, mantém uma rotina diária de estudos e escrita sobre o tema a qual dedica a vida: a teologia feminista. “Minhas coirmãs [da congregação] nunca me impediram de pensar o que eu penso. E isso é muito importante”, afirmou ela, em entrevista concedida por Skype à BBC News Brasil no último dia 7.
“Eu não defendo o aborto, eu estou falando da legalização, que é outra coisa. Por exemplo, quando você fala da legalização da maconha, você está falando que precisa de leis para o uso da maconha. (…) É preciso legalizar [o aborto]. É preciso legalizar, especialmente pensando nas mulheres pobres, porque as mulheres ricas fazem e não perguntam, e tem muito profissional de medicina que faz e ganha dinheiro fazendo isso, enquanto para mulheres mais pobres, mais vulneráveis, não há proteção legal — há criminalização”, diz. As informações são da BBC News Brasil.