O Brasil condenou um comediante por uma piada. Não por um crime, não por incitação à violência, mas por palavras — duras, sim, ácidas, sem dúvida, mas ainda assim: palavras. Léo Lins foi sentenciado por fazer o que humoristas fazem desde sempre: provocar, escancarar o incômodo, testar os limites do aceitável. Goste-se ou não do seu estilo, há algo alarmante no precedente que essa decisão inaugura: agora, o riso também pode ser julgado. O pior criminoso, no Brasil, é quem opina. Mesmo que seja em forma de piada.
Fiquei matutando sobre essa decisão por dias. Ouvi opiniões de diversos humoristas — muitos deles, calejados pela vigilância implacável das redes — e pela primeira vez percebi um consenso: parece que, finalmente, se deram conta de que o humor, no Brasil, acabou. O humor (a verdadeira vontade de rir) está morrendo. E não sou eu quem diz: levantamento da Organização Mundial da Saúde revelou que o Brasil, antes conhecido pela sua alegria de viver, já figura entre os países com os maiores índices de ansiedade e depressão do mundo. Pasme – já é o mais triste da América Latina!
Mas o que diz mais sobre a nossa sociedade: a piada — ou a nossa incapacidade de rir dela?
Enquanto cozinhava para a família (acreditem, às vezes faço isso), coloquei as panelas no fogo e deixei o caos afetivo tomar conta do ambiente. Me senti uma mamma italiana: espalhafatosa, inteira, generosa. Porque cozinhar, rir, exagerar — tudo isso é expressão de afeto, de presença, de sustância. E como anda fazendo falta essa sustância no mundo.
Vivemos uma era da contenção emocional. Contenção de palavras, de formas, de ação, mas parece que o outro extremo é a compulsão. A magreza virou símbolo de vitória — não só nos corpos, mas na alma. Quanto menos você sente, menos você mostra, menos você incomoda, melhor. Mas o que essa estética seca revela? Talvez, uma crueza emocional. Uma fome não assumida. Uma vida sem tempero.
Às vezes, a gente ri um do outro, sim. E tudo bem. Porque rir de si e dos seus é um sinal de que estamos em paz com nossas imperfeições. Como disse o próprio Léo Lins, após a sentença: “Quando a gente consegue rir de uma dor, é porque já venceu essa dor.” E é aí que mora o ponto: a dor precisa ser vencida — não silenciada.
Hoje, temos trocado o processo de cura pelo hábito do silenciamento. Em vez de elaborarmos nossas dores, preferimos calar tudo o que nos lembra delas — inclusive as piadas. Achamos que, se ninguém falar, ela desaparece. Mas dor não some porque foi esquecida. Ela vira sintoma.
É como tomar Ozempic sem olhar para os gatilhos emocionais que nos levaram ao descontrole alimentar. E veja bem: eu sou a favor do Ozempic, sim. Sou a favor da autoestima, sempre. Do que ajuda, do que alivia, do que impulsiona. Mas não podemos confundir ferramentas com soluções. Não é o remédio, nem o silêncio, nem a piada proibida que nos cura. É o mergulho. É o olhar honesto. É o trabalho interno.
O que está nos tornando tão incapazes de gerenciar as próprias emoções? Por que estamos sempre terceirizando os desconfortos — para os tribunais, para os medicamentos, para os algoritmos?
A censura voltou — só que de salto alto e com filtro no Instagram. Ela não vem mais como o Estado autoritário que corta manchetes ou interdita programas. Ela agora habita as timelines, as hashtags e os olhos atentos de quem espera o menor deslize para cancelar, corrigir, punir. Vivemos o auge do politicamente correto, onde até o humor virou sentença. E enquanto isso, vamos perdendo algo essencial: a leveza.
Mas a censura não para na palavra. Ela chegou também ao corpo. Estamos substituindo o prazer pela performance. Comemos com culpa, rimos com medo, e nos relacionamos com manual. Somos vigiados — pelos outros e por nós mesmos. E assim, até a sobremesa vira um pecado. O brigadeiro de panela foi trocado pela caneta. A alegria do improviso cede lugar ao cálculo calórico. A vida, aos poucos, vai ficando sem gosto, sem graça — e, ironicamente, sem graça também no sentido literal.
Por que estamos abrindo mão do que nos dá prazer? Do que nos dá rir? Do que nos torna humanos?
Talvez seja hora de lembrar que rir ainda é uma forma de resistência. Que o prazer não precisa ser punido. Que nem toda piada é opressora, assim como nem toda restrição é saudável. Precisamos reaprender a rir sem medo. A comer sem culpa. A existir sem pedir desculpas o tempo todo.
A vida já é dura o bastante. Que pelo menos o riso siga leve. E verdadeiro.
Ali Klemt
@ali.klemt