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ADPF do Aborto – O poder de legislar é exclusivamente do Congresso Nacional

Está em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, desde março de 2017, a ADPF 442, que busca a declaração de não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do Código Penal, de modo a “legalizar” a interrupção da gestação induzida e voluntária nas primeiras 12 semanas.

Ocorre que a referida ação de descumprimento de preceito fundamental estava sob a relatoria do Ministro Flávio Dino, tendo sido recentemente retirada por um curto lapso de tempo, exclusivamente, para que o Ministro aposentado Luís Roberto Barroso votasse, retornando, após, para o Ministro Dino.

Tal procedimento fere o devido processo legal, pois a imparcialidade, atributo maior da magistratura para que a justiça se faça, está vinculada à distribuição por sorteio, sem direcionamentos para magistrados que já tenham posicionamento público a respeito de teses colocadas em julgamento.

No caso, a gravidade é maior, pois independentemente da idoneidade inquestionável e do conhecimento jurídico do Ministro aposentado Luís Roberto Barroso – a quem reconheço e admiro em virtude de livros, palestras e comissões em que atuamos juntos -, ele sempre defendeu publicamente o aborto até o terceiro mês de gestação e entregou seu voto horas antes de sua aposentadoria, com nítido intuito de impedir que um novo Ministro, que deverá, por longos anos, exercer a magistratura na Corte, vote em questão desta magnitude.

Este direcionamento, que fere o atributo da imparcialidade, fundamental no exercício do poder de julgar, deve ser elemento suficiente para que sua decisão não seja considerada na referida ADPF.

Outro aspecto relevante diz respeito ao direito à ampla defesa, pois dois Ministros que não estão mais no Tribunal (Rosa Weber e Luís Roberto Barroso) formarão eventual jurisprudência para todo o país, no lugar da legislação do Congresso Nacional, sem que outros dois Ministros que atuarão por anos a fio, possam se manifestar.

Ora, já enfrentei questão semelhante no Pretório Excelso, com solução justa e adequada, pois tanto os votos de Ministros aposentados como os dos novos foram considerados na discussão da Lei nº. 9.718/98 que introduziu a incidência das contribuições sociais sobre receitas não operacionais das empresas em lei anterior à própria Constituição (EC 20/98), que a viria permitir.

Pela constitucionalidade da lei que nasceu inconstitucional, já tinha sido o julgamento iniciado (RE 346.084, Paraná) com dois votos favoráveis à tese por dois Ministros que aposentaram e com pedido de vista do Ministro Cesar Peluso.

Tendo um caso muito semelhante, de relatoria do Ministro Marco Aurélio na Corte (RE 390.840-5, MG), sugeri ao Ministro Nelson Jobim, que à época presidia o STF, que o incluísse no mesmo julgamento, com direito a sustentação oral, após leitura do relatório, votando, assim, depois da união de ambos os processos, o Ministro Peluso e os 10 Ministros, de modo que aquela atual composição plena pôde definir, como precedente com efeito vinculante, a inteligência do Pretório Excelso para todo o país, sem prejuízo dos votos anteriores.

O argumento que sensibilizou a todos foi o de que para a realidade do país, por muitos anos, teria que prevalecer a orientação dada por 11 Ministros e não apenas por 9 Ministros que continuavam na Corte. E foi, rigorosamente, o que ocorreu, com a inteligência de que uma lei nascida inconstitucional não se torna constitucional por emenda posterior, exigindo-se, em decorrência, nova lei.

Este precedente em tema de tal relevância, como é a questão do aborto, deveria ser seguido no julgamento da ADPF 442, de tal modo que a jurisprudência seja firmada com o voto de 11 Ministros que compõem o Pretório Excelso e não apenas 9 em exercício.

Cabe ainda analisar um terceiro aspecto que venho defendendo em diversos artigos e palestras: o poder de legislar é exclusivamente do Congresso Nacional (artigo 49, inciso XI da Constituição). Mais do que isto: nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, se o Pretório Excelso considerar uma omissão do Legislativo inconstitucional, poderá legislar (artigo 103, §2º da Constituição).Vale dizer: a Constituição não delegou poderes legislativos ao Judiciário, tendo sido esta a intenção expressa dos Constituintes.

Nesta esteira, cabe, ainda, dentre diversos outros dispositivos, a análise do artigo 2º do Código Civil que declara que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Não haveria o menor sentido de essa norma ser válida para todos os direitos do nascituro, menos para o mais importante deles, que é o direito à vida. Não sem razão, há dezenas de projetos de leis sendo analisados no Congresso Nacional sobre a legalização ou não do aborto.

Entendo, portanto, que essa matéria não deveria nem mesmo estar sob a competência do Supremo, mas, já que ele se auto outorgou o direito de decidir sobre ela, que, pelo menos, nós tenhamos os 11 Ministros em exercício formando tal jurisprudência.

(Ives Gandra da Silva Martins, jurista, professor universitário e escritor)

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