No início de 2020, na cidade chinesa de Wuhan, o médico Li Wenliang estava em uma cama de hospital com febre. Ele não era um paciente comum e, mesmo assim — antes de a covid ter seu nome na lista de vítimas — temia que ela não fosse uma doença comum.
Li foi considerado um herói na China por falar a verdade. Ele havia sido punido pelas autoridades por tentar alertar os outros sobre o vírus. Mas, em uma terrível reviravolta, ficou gravemente doente por conta da covid. Semanas depois, com apenas 34 anos, a morte dele se tornou a fatalidade mais famosa no país durante a emergência da pandemia.
Sua morte desencadeou uma onda de tristeza e raiva raramente vistas na China. Mais de dois anos depois, Li continua sendo um símbolo de frustração da supressão de vozes independentes pelo governo. Seu perfil na rede social chinesa Weibo recebe centenas de comentários por semana. O espaço se tornou um lugar onde as pessoas prestam homenagens e compartilham histórias pessoais.
Uma investigação do governo sobre as circunstâncias da morte do médico concluiu que o Hospital Central de Wuhan não poupou esforços para tentar salvá-lo. Mas uma imagem mais completa dos cuidados médicos e do tratamento feitos pelas autoridades permanece uma incógnita.
Uma equipe do jornal americano The New York Times preencheu algumas dessas lacunas com uma entrevista exclusiva com um dos colegas de Li. Ele forneceu um relato em primeira mão das horas finais do herói chinês, descrevendo as medidas de ressuscitação que foram usadas e discutidas. Estamos nos referindo a ele apenas como B, porque tem medo de represálias do governo chinês. O Times conversou com B por vídeo e verificou sua identidade com informações públicas.
O The New York Times também obteve e examinou memorandos internos do Hospital Central de Wuhan e os registros médicos de Li, alguns dos quais são corroborados por B. Os registros médicos foram verificados por especialistas e contêm detalhes que correspondem às informações disponíveis publicamente. Oito especialistas médicos chineses baseados nos EUA, que têm experiência no tratamento de pacientes com covid, revisaram os registros médicos para o The Times.
Uma doença grave
No início de 2020, o vírus estava se espalhando rapidamente em Wuhan, a cidade da China onde a pandemia ocorreu pela primeira vez. Li deu entrada no hospital em 12 de janeiro com febre, infecção pulmonar e outros sintomas. De acordo com os médicos do The Times, no terceiro dia, ele estava gravemente doente e precisou de suporte de oxigênio.
Não encontramos nenhuma evidência de que os cuidados médicos foram comprometidos. Mas esses documentos, juntamente com o relato de B e a análise de especialistas, revelam novos detalhes importantes sobre sua doença e tratamento. Juntos, eles mostram como Li passou seus últimos 39 dias lutando contra um vírus mortal — e navegando nas tentativas do governo de censurá-lo.
“Ele foi infectado por uma variante inicial do vírus, então a doença começou de forma aguda, seu curso era fatal e se desenvolveu muito rápido”, disse Wu Yuanfei, virologista da Faculdade de Medicina UMass Chan em Worcester, Massachusetts.
Os especialistas disseram que, com base nos registros, o tratamento que Li recebeu seguiu as normas da época para gerenciar os sintomas dos pacientes com coronavírus.
Ele foi mantido em uma ala de isolamento, autorizado a se comunicar com a família apenas por vídeo.
Li havia sido punido apenas algumas semanas antes pela polícia por alertar amigos em um grupo privado no WeChat sobre o novo vírus que estava se espalhando pela cidade. Seu empregador, o Hospital Central de Wuhan, onde trabalhava como oftalmologista, obrigou-o a escrever uma carta de desculpas.
Apesar dos avisos oficiais, em 27 de janeiro de 2020, Li deu uma entrevista anônima a um importante jornal chinês, descrevendo como ele havia sido repreendido por tentar falar a verdade. Eventualmente, ele revelou sua identidade nas mídias sociais e, instantaneamente, se tornou um herói popular. De sua cama de hospital, ele fez mais entrevistas e disse que esperava se recuperar em breve para se juntar aos profissionais que lutavam contra o surto.
Era 7 de fevereiro, quase 4h, quando o hospital anunciou sua morte, que teria acontecido, segundo eles, às 2h58 da manhã.
A investigação constatou que entre os prontuários estava um laudo de ecocardiograma por volta das 21h10 da noite anterior, que mostrava que seu coração havia parado de bater.
“Acho que Li Wenliang já havia morrido quando o vi por volta das 21h, em 6 de fevereiro”, disse o B. “O processo normal neste momento seria declará-lo morto. Eles empurraram o anúncio com a barriga por muito tempo. É como se o hospital realmente não nos tratasse como seres humanos”, acrescentou.
Para B, dar publicamente sua versão é uma tentativa de divulgar sua história e honrar o legado de Li.

