Por mais que tenham se passado quase 2.500 anos desde a estreia da comédia “As Vespas”, de Aristófanes, a peça grega ainda provoca um riso incômodo, desses que nascem não da bobagem, mas da verdade dita de forma impiedosa. Encenada em 422 a.C., em plena Atenas democrática, a obra satiriza o sistema judiciário da época e expõe, com um humor ferino, os perigos da manipulação política da Justiça e da vaidade de quem julga.
O protagonista é Filocleon, um velho cidadão obcecado pelos tribunais. Sua vida gira em torno de participar como juiz nas cortes populares. O nome já entrega: ele é um “admirador de Cléon”, político populista da época. Em oposição, seu filho, Bdelecleon, literalmente, “inimigo de Cléon”, tenta libertá-lo desse vício. Tranca o pai em casa para evitar que vá aos julgamentos e monta um tribunal improvisado para provar como tudo aquilo é uma farsa. Num dos momentos mais absurdos e hilariantes, o réu é um cachorro acusado de roubar um queijo. Mesmo assim, Filocleon insiste em condená-lo.
Aristófanes pinta o retrato de uma sociedade que se deixou embriagar pelo gosto de julgar. Para ele, os velhos juízes atenienses eram como vespas: prontos para ferroar, não necessariamente para fazer justiça. E o veneno, é claro, servia a propósitos políticos.
A vaidade de julgar, esse traço tão humano, segue viva, mesmo em tempos de currículos técnicos e tribunais recursais. Quando decisões se acumulam mais por convicção pessoal do que por fundamento jurídico, ou quando o Judiciário passa a ocupar o espaço da política e da moral pública, a democracia entra em estado de alerta.
O que Aristófanes já intuía, com ironia impiedosa, é que o problema da Justiça não é apenas estrutural, mas também psicológico e moral. O vício de julgar dá prestígio, alimenta o ego, oferece o doce gosto da punição alheia e, quando associado a interesses políticos, pode corroer o próprio Estado de Direito.
Difícil não enxergar ecos contemporâneos nessa sátira. Ainda hoje, a Justiça corre o risco de se tornar palco de vaidades, arma política ou espetáculo. Embora os tribunais atuais contem com formação técnica e regras mais rígidas, o debate sobre ativismo judicial, decisões monocráticas e a politização do Judiciário continua a incomodar. A obsessão de Filocleon, sob outra roupagem, ainda circula pelos corredores do poder.
O que a peça nos lembra, com graça e ironia, é que o ato de julgar deve ser um exercício de responsabilidade pública, não um vício de ego. Quando a Justiça deixa de ser serviço e se torna instrumento de prestígio ou de perseguição, não estamos muito distantes da Atenas de Aristófanes. E, como naquela época, talvez só o riso reste como última forma de resistência.
As Vespas nos desafia, ainda hoje, a perguntar: a Justiça está sendo feita, ou apenas encenada?
Amilcar Fagundes Freitas Macedo,
Magistrado – Ex-Presidente do TJMRS