No Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, celebrado neste sábado (10), o tenebroso fantasma da “legítima defesa da honra”, que entrou em cena na década de 1940, numa sessão de júri em Ouro Preto, na Região Central de Minas Gerais, volta a assombrar. E a deixar as marcas da maldade, muitas vezes com impunidade para o agressor.
O caso mais recente envolve a cidade mineira de Nova Era, no Vale do Aço. A Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) manteve em votação a absolvição de um homem que confessou ter tentado matar a ex-mulher a facadas, em maio de 2016. A motivação do crime foi uma suspeita de traição, sobrevivendo a vítima à agressão. A decisão revoltou integrantes do movimento Quem Ama Não Mata – surgido nos anos 1970 para denunciar os crimes contra as mulheres –, certas de que houve retrocesso por parte da Justiça.
Em texto divulgado nas redes sociais, o Movimento Feminista Mineiro Quem Ama Não Mata repudiou a tese de legítima defesa da honra, a qual considerou “anacronismo odioso”. Para as integrantes, a tese se baseia claramente na distribuição desigual de direitos entre homens e mulheres. “O STF, ao referendar uma decisão do júri popular, mesmo que baseado em leis e normas constitucionais, emite um sinal misógino para toda a sociedade: homens podem matar mulheres pela justificativa de que o corpo e a vida dessas mulheres lhes pertencem ‘por direito’”.
Após o julgamento por placar acirrado (3 votos a 2), com intenso debate sobre machismo no STF, veio o resultado com base na “soberania dos veredictos”, princípio do direito em que a decisão de um júri popular prevalece sobre a de qualquer instância superior. O caso foi julgado em 2017 e, na época, os jurados aceitaram, por unanimidade, que o ataque estava amparado na “legítima defesa da honra”. O Supremo, por consequência, manteve esse entendimento. O caso já havia sido levado ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), bem como ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ambos entendendo que a absolvição contrariava as provas reunidas no processo e deliberaram pela realização de um novo júri. Agora, com a decisão do STF, não deverá ocorrer.
Argumentos
Usar a legítima defesa da honra na tentativa de absolver o réu acusado de matar ou ferir a mulher é uma situação que continua a existir no país. “E muito, principalmente nos estados do Nordeste e em regiões de Minas, ainda mais quando os jurados são mais velhos”, diz o professor, advogado criminalista e doutor em direito penal Adilson Rocha.
Ele explica que a figura jurídica da legítima defesa existe quando é usado, moderadamente, um meio necessário para repelir uma injusta agressão atual ou iminente em proteção de um direito. Já a “legítima defesa da honra” não tem previsão expressa na lei. E cita um exemplo: “Se você é chamado por alguém de estuprador, e você não é um estuprador, vai responder fortemente à ofensa, chamando o agressor de animal, desprezível e outros nomes. Nesse caso, não constitui crime em legítima defesa da honra, nem serve de argumento, com previsão legal, para matar alguém ou lesionar”, afirma o advogado criminalista.
Rocha dá mais detalhes: “Nos casos de crime doloso contra a vida, consumados ou tentados, como os de feminicídio, a lei determina que o jurado seja submetido a uma quesitação genérica e obrigatória nos seguintes termos: ‘O jurado absolve o acusado?‘. Se o jurado responder sim, ele não está obrigado a nenhuma demonstração do argumento que o levou a absolver o réu. Nesses casos, o advogado argumenta, durante sua fala, que houve, sim, uma legítima defesa da honra, podendo o jurado acatar o argumento (do advogado) de que houve efetivamente uma legítima defesa”. Rocha volta a reforçar que a legítima defesa da honra, “em que pese ter sido muito usado anteriormente, e ainda é, não tem expressa previsão na lei”.
Adilson Rocha conta que a tese da legítima defesa da honra foi usada, pela primeira vez, em Ouro Preto, na década de 1940, quando uma mulher matou a amante do marido. “Muitos advogados usam esse argumento na tentativa de absolver seus clientes. Depois de Ouro Preto, Ariosvaldo de Campos Pires (1934-2003) também se valeu disso no julgamento de um marido que assassinou a mulher, em Belo Horizonte”, destaca. As informações são do jornal Estado de Minas.