Chamada de “a cidade da fúria”, por conta de uma famosa canção dos anos 1980, da banda de rock Soda Stereo, Buenos Aires amanheceu e anoiteceu totalmente silenciosa. Um silêncio angustiante, como expressaram alguns nas redes sociais, e que se sentia no que seria a “hora do rush”.
Por volta das 18h30, na avenida del Libertador, por exemplo, ouvia-se apenas um ou outro carro passando, rasgando o que parecia ser um cartão-postal, de tão imóvel.
Não se escutavam os insultos no trânsito, brigas entre taxistas e ciclistas, nem vendedores ambulantes chamando os transeuntes para vender produtos, nem pedestres que pedissem respeito às faixas de trânsito para poder atravessar. Cenas que ocorrem todos os dias. Porque nenhum deles estava lá.
Na praça de Maio, sabia-se que dentro da Casa Rosada, sede do governo da Argentina, havia reuniões para definir como estava sendo o controle da aplicação da quarentena obrigatória devida à pandemia de coronavírus — a que todos os argentinos e residentes estão submetidos desde a meia-noite anterior —, e que passos dar para que a atividade econômica não desabe.
Uma das respostas que ainda não foram dadas, embora citadas pelo presidente Alberto Fernández na noite anterior, é como quem vive do comércio informal, nas ruas, será compensado.
Fora dali, na praça onde ocorrem manifestações políticas que reúnem milhares de pessoas, podia-se ver, por volta das 17h, apenas três tripés e três grupos de jornalistas televisivos e suas câmeras que, como eu, testemunhavam o que parecia uma Buenos Aires atingida por uma bomba química dos filmes de ficção científica, daquelas que eliminam as pessoas, mas mantêm os edifícios intactos.
Não havia turistas tirando selfies diante da bandeira. Nem casais tentando ver os “granaderos” que guardam o local, como fazem os oficiais que guardam o Palácio de Buckingham, em Londres. Hoje, eles não foram incomodados para posar para fotos, apenas olhavam para um horizonte imóvel, como nós.
Houve problemas, é claro. Na praça Miserere, onde está uma das estações de metrô mais movimentadas, e que sempre está povoada de ambulantes e de gente passando apressada, se via uma cena inusitada. Havia apenas uma pessoa, mantida isolada num local, fechado por faixas de segurança e cercado de membros das autoridades sanitárias e da polícia.
Contada aos gritos por um oficial, uma vez que não podíamos nos aproximar, a história era a seguinte: tratava-se de um jovem argentino de 27 anos que disse precisar ir para casa, no interior da província de Buenos Aires. Mas ele afirmou que tinha vindo do Brasil (um dos países considerados de risco pela Argentina) — e, por isso, deveria estar em quarentena obrigatória.
Ele pedia água aos oficiais, dizia que queria ser levado para casa e que tinha sintomas. A polícia o removeu, logo depois, a um dos hotéis emprestados pela prefeitura para servir de locais de quarentena e de hospitais, pois não havia como transportá-lo a Mercedes, a cidade onde vive, naquele momento.
A quarentena também esvaziou as estradas. A ideia do governo era justamente que as pessoas não fossem ao litoral, uma vez que na segunda-feira será feriado e o clima ainda está quente e agradável de final de verão.
Nos pedágios, havia viaturas e ambulâncias, e todos tinham que parar e explicar aonde iam. Se alguém não tinha como provar que voltava para seu domicílio ou que tinha que visitar um parente doente, era mandado de volta a Buenos Aires com uma notificação.
Com o aviso, sua residência ficava registrada e, em alguns dias, algum oficial iria conferir se a pessoa ou a família em questão cumpria o confinamento obrigatório.
Outras 90 denúncias de pessoas que estava descumprindo a quarentena foram verificadas na cidade e quase 400 no país, segundo dados oficiais. Alguns, os que resistiam, eram detidos, mas a maioria foi levada para casa com a notificação de que seriam visitados de novo.
Assim como amanheceu, a “cidade da fúria” anoiteceu em silêncio.
