Com 8,5% da população global, mas com um terço dos mortos pela pandemia, a América Latina não tem ação conjunta contra o coronavírus e vê seus países lutando solitários contra a crise sanitária
Fabricia Albuquerque
Região tem recordes de casos, mesmo em países como Uruguai e Chile, que vinham bem e lideram na vacinação. (Foto: Reprodução)
Em fevereiro, o diretor da Equipe de Trabalho Africana para a Aquisição de Vacinas (AVATT, na sigla em inglês), John Nkengasong, que também comanda o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) da União Africana, anunciou a compra de 300 milhões de doses da russa Sputnik V.
Meses antes, a mesma equipe garantiu a aquisição de 270 milhões de doses de AstraZeneca, Pfizer e Johnson & Johnson. O exemplo da União Africana (UA) confirma, a importância da integração regional em momentos críticos. Na América Latina, onde vivem 8,5% da população mundial e, até agora, foram registrados cerca de um terço dos óbitos da pandemia (Brasil e México são epicentros globais), a integração foi desarticulada nos últimos anos em nome de bandeiras políticas e ideológicas. O resultado é catastrófico.
Se na UA, suas autoridades — cientes de que ainda estão longe de conseguir imunizar 60% dos 1,3 bilhão de habitantes do continente — comunicaram que numa reunião prevista para abril será discutido um roteiro para impulsionar a capacidade africana de produzir vacinas contra a covid-19, os países da América Latina tentam, cada um por si, obter imunizantes por todos os lados. Até o começo deste mês, a região representava apenas 6% do total de doses de vacinas contra a covid-19 aplicadas no mundo.
Com exceção do Chile, que aplica uma média de 200 mil doses diárias e já imunizou (com a primeira dose) 5 milhões de pessoas (28% da população), os demais países continuam na luta por conseguir vacinas. Numa das regiões mais devastada pela pandemia e, também, pela crise social e econômica decorrente dela, os esforços conjuntos para enfrentar a pior crise sanitária da História recente são escassos e, na prática, não conduzem a resultados concretos.
Com o desmonte da União de Nações Sul-americanas (Unasul), criada em 2008 por forte iniciativa do Brasil, perdeu-se o único espaço de governança regional que teve, embora por um curto período de tempo, mecanismos de ação conjunta em diversas áreas, entre elas a saúde. Em 2009, numa reunião realizada no Chile, foi criado o Conselho de Saúde do bloco.
O professor emérito da Fiocruz Paulo Buss, que representou o Brasil no conselho, lembra que dentro dele funcionava um grupo de trabalho sobre vigilância epidemiológica e sanitária, montado com o objetivo de agilizar a troca de informações diante de qualquer surgimento de surtos de doenças que pudessem ser transmissíveis. Na época, temia-se a chegada de uma epidemia do vírus da gripe H1N1.
“Hoje, nossa situação se sintetiza em duas palavras: fragmentação e fragilidade. Já tivemos uma fortaleza, chamada Unasul”, opina Buss.
O professor da Fiocruz destacou, ainda, a cooperação que existiu para a compra conjunta de medicamentos, por exemplo, para o HIV.
“Negociávamos juntos com laboratórios para conseguir preços mais baixos. Hoje, faria toda a diferença fazer o mesmo com as vacinas”, lamenta Buss.
Visão do governo
A visão do governo brasileiro diverge totalmente. Reconhece-se que os mecanismos de integração existentes hoje são insuficientes, mas não se sente a menor melancolia pelo passado recente. A Unasul, para o Itamaraty, era uma estrutura cara e ineficiente, sustentada em coincidências políticas entre governos que já não estão no poder.
Hoje, o foco está posto em utilizar o Mercosul e o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), criado em 2019, que realizou uma cúpula presidencial virtual na semana passada, sem decisões de impacto para a região.
Nos dois âmbitos, ministros da Saúde se reúnem, são lançados projetos pluriestatais, entre outros, sobre pesquisa, educação e biotecnologias aplicadas à saúde. No bloco entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, as iniciativas comuns são financiadas pelo Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), que no início do ano passado contava com US$ 179 milhões. Pouco diante da tragédia sanitária que assola todos os países.