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Ditadura do bem-estar: entenda como a vida e as redes transformaram a saúde em autoperformance constante

"Estamos inseridos em uma 'vitrine' digital, o que torna tudo uma grande competição", diz escritor. (Foto: Reprodução)

Chegar aos 40 anos mexeu com as estruturas da publicitária carioca Raphaella Avena. Em busca de trocas com outras mulheres, criou o perfil no Instagram @quarentamos, para debater temas como nutrição, sexo, climatério e a importância de uma vida saudável. Foi quando, ironicamente, os exercícios físicos tornaram-se uma pedra no meio de sua esteira. “Malho certinho nas três semanas do mês, mas na última, quando estou de TPM, não piso na academia. E isso me traz uma culpa enorme”, explica Raphaella.

Mais do que prazer, exercitar-se virou uma rotina constante de ser sempre a sua melhor versão. À prova do público e da validação externa. “Hoje, aos 43, sinto que esperam muito de mim e tenho que performar cada vez mais e melhor não só na academia, mas em tudo”, desabafa ela. “Quando acordo, vejo que muita gente já malhou, está terminando o café, indo para o trabalho, e eu ainda não. É uma eterna dívida”.

Comer a quantidade certa de proteínas e carboidratos, dormir ao menos oito horas por dia, fazer ioga, pilates, musculação, aeróbico, auxiliados por suplementação, e, ainda estar muito bem disposta todos os dias. A rotina, no off, quase nunca segue o roteiro perfeito do que é vendido on-line. Mas muita gente tem caído na armadilha antiga, e muito bem repaginada, da “ditadura do bem-estar”.

Para o escritor e consultor André Carvalhal, a necessidade humana de pertencimento, entrando em todas as “ondas”, foi elevada à múltipla potência no mundo digital. “Tudo o que começa com boa intenção pode virar algo ruim, e é o que sinto com o movimento wellness. Vivemos na exaustão, e ao buscar uma forma de recompensa, aparecem alimentos, produtos, experiências, tudo como um alívio, uma solução”, acredita. Inseridos numa sociedade que nos coloca em uma “vitrine” digital, esse comportamento incita a competição e a performance. “As pessoas sentem a necessidade de se mostrarem e se ‘venderem’”.

Personal trainer, a paulista Fabiola Menezes diz que o comportamento de fotografar e filmar os próprios treinos, muitas vezes atrapalhando a rotina de outros alunos com ringligths pelo caminho, já é praxe nas academias. Além disso, o excesso de esforço, chamado de overtraining, pode causar lesões e fazer com que o praticante precise dar, contra a vontade, dois passos para trás. “Quem se cobra tanto sente que, se diminuir o ritmo, também terá cobranças externas. Isso, na maior parte dos casos, é causada pela própria ansiedade de desempenho”, alerta Fabiola.

E essa ansiedade surge até mesmo em quem faz da superdisciplina um de seus maiores objetivos. O arquiteto Pedro Santos, de 29 anos, é praticante de crossfit e assíduo na academia, além de ter acompanhamento nutricional. Mas bastaram algumas semanas de férias para que sentisse que a mente – e o shape – já haviam saído dos trilhos. “O que era para ser um momento de lazer, virou motivo de estresse. Se fico longe dos treinos, vejo meu corpo mudar. Fico feliz com meus resultados, mas ao olhar para as redes, sei que estou longe do ideal”, explica.

Mais do que desafiar constantemente o corpo, a autoperformance atinge, segundo a psicóloga Daniela Faertes, os valores sociais mais proeminentes da atualidade. “Status, dinheiro, beleza, corpo… São construções sociais inalcançáveis, que nos provocam mal-estar”, garante ela. Para tratar o problema, o remédio, no entanto, não é tão amargo quanto parece. “É preciso entender a verdadeira razão por querer performar tanto. Porque isso é aplicável em algumas áreas da vida, por determinado tempo, e não em todas”. Em uma sociedade de aparências, continua Daniela, é impossível saber o que está por trás do que surge ao rolar o feed. “O autoconhecimento é a chave para criar um padrão de mentalidade saudável”. E respeitar os limites do corpo também. As informações são do jornal O Globo

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