Momentos antes de estuprar uma menina de 12 anos, o combatente do EI (Estado Islâmico) explicou que o que estava prestes a fazer não era um pecado. Já que a garota era adepta de uma religião diferente do Islã, o Alcorão não apenas lhe dava o direito de estuprá-la – ele encorajava isso, insistiu o jihadista. Após amarrar suas mãos e amordaçá-la, ele se ajoelhou ao lado da cama e se prostrou em oração antes de consumar o ato sexual. Quando acabou, se ajoelhou para orar de novo, cercando o estupro com atos de devoção religiosa. “Eu fiquei dizendo que estava machucando, para ele parar por favor. Ele disse que segundo o Islã ele pode estuprar uma infiel, que isso o deixa mais perto de Deus”, disse ela, que escapou após 11 meses em cativeiro.
O estupro sistemático de mulheres e meninas da minoria religiosa yazidi se entranhou na organização e na teologia radical do EI desde que o grupo anunciou que decidira reviver a instituição da escravidão. O comércio de mulheres yazidis criou uma infraestrutura permanente, com uma rede de armazéns onde as vítimas são mantidas, salas de exibição onde elas são inspecionadas e vendidas e uma frota de ônibus usada para transportá-las. Um total de 5.270 yazidis foram sequestradas no ano passado, e ao menos 3.144 ainda são mantidas em cativeiro, de acordo com líderes da comunidade.
Para negociá-los, o EI desenvolveu uma detalhada burocracia de escravidão sexual, incluindo contratos de venda registrados por cortes islâmicas. A prática também se tornou uma ferramenta para recrutar homens de sociedades muçulmanas profundamente conservadoras, onde sexo casual é tabu e namoros são proibidos.
Um crescente número de memorandos internos e discussões teológicas estabeleceu diretrizes para a escravidão, incluindo um manual divulgado pelo Departamento de Pesquisa e Fatwas (decretos religiosos). Repetidamente, as lideranças do EI enfatizam uma leitura seletiva do Alcorão que não apenas justifica a violência, mas que celebra cada ataque sexual como espiritualmente benéfico, e até virtuoso.
A introdução da escravidão sexual sistemática pelo EI data de agosto de 2014, quando seus combatentes invadiram as vilas no flanco sul do Monte Sinjar, no Norte do Iraque, lar dos yazidis, uma minoria religiosa que representa menos de 1,5% da população do país. Os sobreviventes dizem que homens e mulheres foram separados logo após a captura.
Tráfico sexual foi calculado.
Homens e meninos mais velhos eram executados; as mulheres, meninas e crianças eram levadas embora em caminhonetes. Depois, eram mantidas em confinamento por dias ou meses, e então enviadas em grupos menores a outras partes do Iraque e da Síria, onde eram vendidas como escravas. “O ataque ao Monte Sinjar foi tanto uma conquista sexual quanto territorial”, diz Matthew Barber, um especialista em yazidis da Universidade de Chicago (EUA). Relatórios da Human Rights Watch e da Anistia Internacional chegaram à mesma conclusão sobre o tráfico sexual. “Foi algo 100% planejado. Falei por telefone com a primeira família que chegou a Mossul, e o local já estava preparado para eles. Havia colchões, pratos e talheres, comida e bebida para centenas de pessoas”, diz Khider Domle, um ativista comunitário yazidi.
Da mesma maneira que passagens da Bíblia foram usadas séculos mais tarde para apoiar o tráfico de escravos nos EUA, o EI cita versos específicos do Alcorão ou a Sunna – as tradições baseadas nas falas e atos do profeta Maomé – para justificar o tráfico humano. Estudiosos da teologia islâmica se dividem sobre a interpretação. “No meio no qual o Alcorão surgiu, havia a prática difundida de homens terem relações sexuais com mulheres que não eram livres”, observa Kecia Ali, professor de religião na Universidade de Boston (EUA). Já Cole Bunzel, professor de teologia islâmica na Universidade de Princeton (EUA), discorda, apontando a numerosas referências à frase “aquelas que sua mão direita possui” no Alcorão, que por séculos foi interpretada como “mulheres escravas”. (AG)
