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Inegociável

Há poucos meses, quando das últimas eleições americanas, o mundo assistiu com espanto à invasão do Capitólio, ápice de uma escalada retórica da gestão de Donald Trump, ao incitar seus eleitores contra o resultado das urnas. Hoje, há notáveis semelhanças entre aquele episódio e o discurso adotado aqui por alguns defensores do voto impresso. Mesmo sem tradição revolucionária, pelo menos não em grande escala, o Brasil quase sempre acomodou as suas contradições, dilemas e crises de forma pacífica, numa engenhosa combinação de interesses que, ao longo do tempo, foi moldando a arquitetura patrimonialista de apropriação privada do Estado. Quase tudo sempre se arranjou de modo que determinadas mudanças fossem refreadas, mesmo ao preço de contínuo sangramento do erário, senão de corrupção endêmica. Parte da nossa aviltante desigualdade social deriva dessa incapacidade de reformar a estrutura do Estado, historicamente paquidérmico e ineficiente. Faltou ao País, por certo, períodos mais duradouros de fortalecimento institucional. Desde a República, o presente ciclo é o mais longevo a garantir estabilidade democrática ao País. A partir da redemocratização, o Brasil passou a contar com eleições livres, sugerindo que o tempo e a prática de contínuos pleitos se encarregariam de tornar cada vez mais robusta a nossa democracia. Muito embora tenhamos tido, desde então, o impedimento de dois Presidentes da República, não é descabido afirmar que avançamos nos principais fundamentos democráticos. Nunca, porém, houve nada parecido com o atual estado de beligerância, no qual os contendores polarizam e antagonizam-se, dentro de um ambiente de crescente intransigência. O diálogo vem sendo suprimido e as próprias eleições têm sido ameaçadas por nossa principal autoridade pública.

Prever o futuro nunca foi uma tarefa fácil, mas a missão se torna menos árdua quando sobram evidências de que algo possa acontecer. Há previsões simples, quando, por exemplo, olhamos para céu coberto por nuvens escuras e deduzimos que pode chover. Existem, porém, antevisões mais complexas, especialmente aquelas decorrentes do comportamento humano, geralmente eivado de contradições. É nesse último diapasão que se percebem rumores cada vez maiores de que teremos problemas graves nas próximas eleições. O assunto do momento são as urnas eletrônicas que, de exemplo de eficácia para o mundo, passaram a ser questionadas pelo atual Chefe do Executivo Federal. O histórico da atual polarização que cindiu o País, nutre-se da combinação crescentemente irreconciliável de fatos e declarações, feito a crônica de uma tragédia anunciada. Como chegamos a esse quadro? Como foi possível um desacordo tão profundo a ponto de ameaçar a própria estabilidade de nossas instituições, numa perspectiva sombria na qual sobram, de parte a parte, ameaças, rancores, mentiras e um ódio visceral que alimenta narrativas de violência, supressão dos contrários e eliminação do diálogo enquanto elemento de contenção e conciliação? Compreender essa conjuntura pode iluminar um pouco melhor o campo das alternativas para que a exacerbação do sectarismo e da intolerância não mergulhem o Brasil no caos e na violência, ou num “vale-tudo”, conforme preconizou, há poucos dias, o atual Presidente da República, protagonista maior da presente controvérsia

Em momentos como esse, o essencial deve ser defendido e preservado, e não pode haver dúvida de que o Estado Democrático de Direito deve ser inegociável. Depois de tantos anos de fortalecimento institucional, qualquer recuo cobraria do País um preço demasiado alto, quer em termos políticos, quer ainda no desassossego da vida nacional e repercussões ainda difíceis de avaliar nos campos econômico e diplomático. O voto é a alma da democracia e sustentáculo do modelo que permite ao povo exercer o seu poder de forma livre e soberana. Mesmo o mais agudo desacordo não pode colocar em risco as eleições de 2022, e para que isso seja garantido, a omissão não deve ser uma opção diante da atual polêmica.

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