Cercar e administrar um território virou um negócio – muitas vezes mais rentável que a venda de drogas – e transforma o funcionamento das facções de traficantes em todo o Brasil. Assim como faz a milícia, eles ganham dinheiro por meio da extorsão de moradores, impondo um monopólio da venda de serviços de internet ou cobrando uma espécie de pedágio de quem trabalha com carro de app ou mototáxi.
“A gente chama isso de milicialização do tráfico. O chão, o domínio territorial, dá para eles muito mais dinheiro do que a venda de entorpecente”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo o delegado André Neves, diretor do Departamento Geral de Polícia Especializada do Rio. “Os traficantes absorveram a lógica da milícia e perceberam que dá muito dinheiro cobrar taxas.”
Inquéritos abertos pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, que obtiveram a quebra do sigilo de conversas de criminosos do Comando Vermelho (CV), principal facção do Estado, demonstram que a lógica é puramente econômica. “Em uma rua, um ou dois vão usar cocaína. Mas quantos usam internet? Todos”, explica o policial.
Segundo ele, ao fechar a comunidade para entrada externa, tudo vira monopólio e fica passível de extorsão. “Nos Andes, de onde sai a cocaína, há concorrência. No Paraguai, de onde vem a maconha, há vários grupos criminosos. Nas estradas, há concorrência, risco de prisão. Perde-se droga”, argumenta. “Se boto barricada no meu bairro, já começo a ganhar na hora. É lucro imediato e sem concorrência. E se boto a barricada no quarteirão seguinte, já tenho mais quase 200 pessoas para extorquir. Eu exploro tudo.”
O delegado aposentado Vinicius Jorge, que investigou e acompanhou o crescimento das milícias no Rio, afirma que esse modelo, há anos, vem se aperfeiçoando no vácuo das omissões e corrupções dos agentes públicos. Como ele observa, após perder lideranças e se subdividir, os milicianos foram enfraquecidos e passaram a perder territórios históricos para os traficantes, especialmente na zona oeste carioca.
“A rigor, o tráfico já vinha perdendo receita com as drogas sintéticas, delivery de drogas, entrega digital. Cocaína e maconha em favela foram virando coisa velha”, diz. “O traficante precisava de novas fontes de renda. Olhou para o lado e copiou a milícia. E, nesse modelo, quanto mais área, mais receita.”
Um policial militar que atua no setor de inteligência, mapeando os complexos da Penha e do Alemão de forma velada, explica que esse tipo de cobrança virou regra nos últimos cinco anos. “Luz, água, carvão, gelo, gás, internet, vans, mototáxis, carro de aplicativo… Tudo agora é deles (traficantes) e precisa pagar algum tipo de taxa. São valores que parecem pequenos, mas, considerando a massa de trabalhadores que vive ali, geram milhões de reais por mês”, disse, pedindo anonimato.
Um botijão de gás de cozinha, por exemplo, pode custar R$ 150 na favela. No Estado do Rio, o preço de referência do produto usado pelo programa federal Gás do Povo é de R$ 92,12. Na Rocinha, comunidade da zona sul dominada pelo CV, a estimativa é de que cerca 1,5 mil motos paguem taxa semanal de R$ 150, o que rende lucro superior de quase R$ 1 milhão para o CV. “E comerciantes e empresários precisam fazer doações recorrentes de cestas básicas, que depois são vendidas para a população e viram dinheiro para os bandidos.”
Como aponta a investigação da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) que gerou a megaoperação de terça-feira, que terminou com 121 mortos, o CV usa a Penha e o Alemão como base para uma expansão em comunidades da zona oeste do Rio, anteriormente dominadas pela milícia, em movimento de ampliação do território que, segundo o delegado Neves, tem fins financeiros. A expansão tem priorizado ofensivas concentradas na região de Jacarepaguá, onde houve guerras sangrentas na disputa pelo território.
Na Gardênia, por exemplo, grande parte das ruas já tem barricadas do tráfico. As comunidades da Chacrinha e Bateau Mouche passam por transformações similares. A Muzema, bairro em que a milícia construiu irregularmente dezenas de prédios, foi pensada por esses bandidos para abrigar verticalmente centenas de trabalhadores da próxima e próspera Barra da Tijuca, colocando em prática um enorme sistema de extorsão pelo uso de cada unidade.
Agora, os novos donos do pedaço – os traficantes – copiam e exploram também o uso e parcelamento do solo, assim como dos apartamentos. “O CV fez recadastramento de todos os moradores para cobrar também taxas de condomínio dos antigos prédios da milícia e extorquir valores até do aluguel”, explicou o policial militar que falou ao Estadão.
O engenheiro Sancler Melo, ex-subprefeito do Recreio dos Bandeirantes, confirma que os espaços invadidos pelos traficantes adotaram as mesmas práticas dos antigos inquilinos criminosos. “No começo, em alguns lugares, até houve uma acomodação, mistura de tráfico com milícia, como na comunidade do Terreirão. Com o tempo, e o avanço dos traficantes sobre várias áreas, a conclusão deles foi: vamos ficar com tudo.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
