Antes mesmo do lançamento oficial no Brasil, o Mounjaro — indicado para diabetes tipo 2 e usado no tratamento da obesidade, movimenta um mercado paralelo que conecta clínicas médicas e estéticas a farmácias de manipulação.
Nas redes sociais, proliferam os chamados “protocolos de emagrecimento”, que prometem versões manipuladas da tirzepatida com eficácia supostamente igual — ou até superior — à do medicamento original. Alguns pacotes incluem canetas injetáveis anunciadas como “originais”, que entram no País por contrabando, sem controle sanitário.
No caso da manipulação, as clínicas alegam utilizar o mesmo princípio ativo do Mounjaro, a tirzepatida, “com 99% de pureza”.
De acordo com os atendentes, o insumo seria importado por farmácias de manipulação e, então, repassado às clínicas. No entanto, não há qualquer transparência sobre a origem do produto, quem são os fornecedores ou documentos que comprovem qualidade.
Além disso, a suposta tirzepatida é diluída em uma substância descrita como “diluente especial” — cuja composição não é divulgada — e acondicionada em ampolas com concentrações que variam entre 30 mg e 60 mg, o que representa até quatro vezes a concentração máxima do medicamento original.
Os protocolos são vendidos em pacotes fechados, que variam de R$ 3 mil a R$ 10 mil. Ou seja, até 4 vezes mais que o preço estimado do Mounjaro quando chegar ao mercado nacional.
O valor costuma ser justificado pela promessa de uma “experiência completa”: além de uma única ampola do manipulado, inclui a aplicação das doses fracionadas na clínica, acompanhamento nutricional, procedimentos estéticos, e por aí vai. Em uma das ofertas analisadas, o protocolo incluía injeções de cafeína “desenvolvidas pelo próprio médico” para potencializar o emagrecimento — algo sem respaldo científico ou autorização para uso injetável.
Outro ponto que chama a atenção é o controle da distribuição: os medicamentos manipulados são fornecidos exclusivamente para as clínicas, impedindo a compra direta em farmácias. Além disso, não há exigência de um diagnóstico formal de diabetes ou obesidade. Pessoas magras, em busca de resultados estéticos rápidos, também são incentivadas a iniciar o “tratamento”.
Os médicos e outros profissionais envolvidos na promoção dos produtos costumam ser influencers, alguns com milhões de seguidores. Muitos deles também trabalham com outros métodos controversos, como “chip da beleza” e soroterapia, e se dizem especialistas em emagrecimento e longevidade, embora não possuam qualquer especialidade registrada.
Na opinião de Claudio Maierovitch, médico sanitarista da Fiocruz e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de um interesse altamente comercial, existe uma engrenagem operando em zonas cinzentas da regulação. “É um abuso das medidas judiciais e das brechas legais.”
Um exemplo, afirma Maierovitch, está na diferença de exigências entre a indústria farmacêutica e as farmácias de manipulação. Enquanto as primeiras precisam cumprir uma série de etapas rigorosas para colocar um novo medicamento no mercado, as segundas seguem regras distintas. Desde que exista uma receita médica individual, não há obrigação legal de utilizar insumos pré-qualificados pelo órgão regulador.
Pode parecer uma estratégia arriscada, mas isso ocorre porque a função das farmácias de manipulação é diferente. Elas existem justamente para atender necessidades específicas de pacientes que não se adaptam aos medicamentos produzidos pela indústria.
“Um exemplo legítimo de manipulação seria quando uma criança não consegue engolir comprimidos e o médico prescreve o mesmo princípio ativo em solução líquida. Isso é uma exceção”, explica o endocrinologista Clayton Macedo, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem). “Mas o que temos visto é um desvio dessa lógica: algumas farmácias passaram a produzir em larga escala e, em vez de complementar a oferta da indústria, estão competindo com ela sem ao menos ter estrutura para esse tipo de produção.”
Na prática, os insumos usados por farmácias de manipulação entram no País após liberação da Receita Federal, com base em documentos fornecidos pelas empresas importadoras. Se tudo estiver “ok” no papel, o insumo é liberado. O ponto crítico é que a Anvisa não faz análises laboratoriais para confirmar se o que foi declarado condiz com o que está sendo entregue. Nem mesmo as vigilâncias locais fazem essa verificação: sua atuação se limita à análise da documentação. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.