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O espelho que deforma

Na Folha do último domingo, 30.11.2025, o jornalista americano William Jeffrey Barnt, escreveu um artigo cujo título “O Brasil e a Bondade de Estranhos”, reflete um dos nossos traços culturais mais marcantes, a hospitalidade. “Viver neste País me ajudou a desacelerar, a saborear cada momento e a rir muito mais. Passei a vida atrás do sonho americano e ele estava bem aqui”, concluiu o jornalista, mostrando que algumas de nossas virtudes continuam encobertas sob o véu de nossa baixo autoestima.

O Brasil sempre teve uma relação de boa convivência com os EUA, espelhada não apenas em relações amistosamente recíprocas ao longo dos anos, mas em semelhanças históricas em suas respectivas gêneses. Mesmo sendo países continentais, com sociedades forjadas por imigração europeia, recursos naturais abundantes, ambos foram colonizados, e também marcados, pela chaga da escravidão, o que lhes conferiu ainda maior identidade histórica. Embora com roteiros semelhantes, os EUA se transformaram na nação mais rica e poderosa do planeta, enquanto nosso País ficou preso a um patamar intermediário de desenvolvimento. Nem tudo, porém, são flores para nosso o “grande irmão do norte”. No livro Mortes por Desespero, os economistas Anne Case e Angus Deaton revelam um retrato perturbador da sociedade americana: um país no qual, pela primeira vez na história moderna, a expectativa de vida de parte da população está diminuindo. Suicídios, overdoses de opioides e doenças relacionadas ao alcoolismo formam um quadro de degradação econômica, social e emocional que atinge sobretudo homens brancos sem diploma universitário. Um fenômeno que nasce da perda de empregos estáveis, da desintegração comunitária, de um sistema de saúde predatório e de um individualismo que transforma fracasso financeiro em fracasso moral.

O economista e filósofo Roberto Gianetti tem usado esse contraste para levantar um ponto fundamental: o Brasil sofre de um colonialismo mental que corrói sua autoestima. Nossa elite, e boa parte do debate público, insiste em tratar o País como uma cópia malfeita de nações desenvolvidas, especialmente dos Estados Unidos. A métrica de sucesso é sempre externa; o julgamento, sempre comparativo; o destino, sempre frustrado.

Segundo Gianetti, essa mentalidade é incapaz de reconhecer nossas próprias virtudes, limitações e particularidades. Ela nos obriga a perseguir modelos que não são nossos, gerando uma imitação canhestra de sociedades que, como mostram Case e Deaton, estão longe de serem exemplos a seguir. Nos EUA de hoje, um jovem homem de 18 anos tem mais chance de morrer antes dos 50 do que um jovem de Bangladesh, um dado chocante que revela o grau de deterioração de um país que, por décadas, foi referência global.

Essa epidemia de desespero não é um acaso estatístico. É um subproduto direto de um capitalismo que desestruturou comunidades, retirou dignidade de quem não tem diploma universitário e transformou a busca individual por sucesso em um imperativo absoluto. Para quem não “vence”, resta o rótulo de perdedor e, com ele, depressão, dependência química e ressentimento. Donald Trump é o sintoma político desse adoecimento, um líder que canaliza frustrações profundas, vende inimigos imaginários e colhe dividendos eleitorais da ruína emocional de milhões.

Ao mirar obsessivamente esse modelo, o Brasil corre o risco de importar não apenas suas virtudes econômicas, mas também seus vícios sociais. Por isso, Gianetti argumenta, com razão, que precisamos construir um projeto autônomo de país, capaz de integrar nossa história, diversidade, sociabilidade e sistema de proteção social. Temos problemas enormes, é verdade, mas também uma capacidade rara de convivência, uma cultura comunitária rica e uma experiência consolidada de políticas sociais que protegeram milhões da miséria extrema.

O desafio é abandonar o espelho que deforma e adotar uma visão menos submissa, mais estratégica e mais generosa com o que somos. O Brasil não precisa ser uma versão inferior dos Estados Unidos. Precisa ser uma versão melhor de si próprio.

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