Ícone do site Jornal O Sul

O novo tempo antigo

A mulher, na Idade Média como nos vestígios corporativos já pós-medievais, é valiosa pelo que fez e insignificante na hierarquia do mandar, apesar de gerenciar o lar que era lindeiro da oficina.

Antes de deixarmos as Corporações (e a própria Idade Média) no leito da História, valeria a pena lembrar fatos que – a maioria deles, pelo menos – foram determinantes para que se acelerasse a desestruturação daquelas que, se acreditava (as corporações) eram instituições criadas com pretensão à perpetuidade. Cria-se na sua solidez, tanto a nível interno quanto a sua relação institucional com o mundo externo.

A discrição era um dos seus trunfos, mas não cultivavam o secreto, numa postura que, nos dias de hoje, lembraria o clima maçônico (sem sê-lo). Ao lado de fatores externos (com a própria divisão dos espaços de poder que, também por isso levou a fragilidade de seus, já então, substituíveis titulares).
Juntaram-se, os insatisfeitos explícitos com os recentes, rebelados, muitos, contra a discriminação de que se sentiam vítimas. França e a Lombardia, naquela época, território autônomo, hoje parte da Itália – viram crescer a corrosão das antigas oficinas.

Não era só motivado pelo antes alinhado a queda do mundo corporativo. Na medida que a nefasta bactéria do nepotismo alojou-se no sangue da corporação e a sucessão do Mestre – antes regulada pela disputa num concurso aberto em busca de “obra prima” – passa a ser de “pai para filho”, a respeitabilidade e o poder da célula mater do sistema viram-se contestados. E logo, na rapidez histórica de 150 a 200 anos, ruiu estrepitosamente. Em uma que outra cidade, restava uma isolada oficina.

Não representava um sistema vigente. Era apenas solitária caricatura para lembrar o ocorrido.
É nesse doloso e dolorido processo de decadência de um sistema que criara, com a Corporação e suas oficinas, um poder poderoso, que não era o Estado, mas que, com ele, muitos confundiram: nem era uma frutificação das ideias liberais, apesar de encontrarmos autores respeitados que viam nela (a Corporação) distantes, mas consistentes alvores da economia de mercado. Durou quase mil anos porque, espalhando-se por muitas regiões, transfigurou-se, adaptando-se, sem perder a viga mestra, à realidade local. Não havia mais a Corporação (igual a si mesma e irmã gêmea das outras corporações). Sobreviveu, parcialmente, o gênero. Da espécie similar restava mera lembrança.

A mulher, na Idade Média como nos vestígios corporativos já pós-medievais, é valiosa pelo que fez e insignificante na hierarquia do mandar, apesar de gerenciar o lar que era lindeiro da oficina. Jamais foi admitida como aprendiz, consequentemente não tinha o direito de esperar um dia ser companheira. A titulação de Mestre não era algo que buscasse porque seria conquistar o impossível.

Mas, como no “De Bello Galico”,Cesar ensinava que o “êxito sempre estava ligado a uma jornada exigente”, quando o feudalismo – modelo prevalente nas relações humano laborais no meio rural – vivenciou o seu processo de esvaziamento, sem obedecer esquemas prévios, o imã atraente para populações que fugiam da miséria foi o farol da cidade. Não sabiam bem o que era mas, religiosamente devotos, rezavam para que fosse a “Canaã desconhecida”.

No entanto, com o passar do tempo – e não muito – a massa, deslocando-se, fazendo daquela urbanização um processo continuado (sem regras prévias) e espontâneo, alterou os caminhos conhecidos, que eram poucos e, nos quase desconhecidos, que não se sabia quantos seriam, aventurou-se, “atropelando os ainda nascituros”, princípios de política demográfica.

Numa formidável coincidência cronológica, que me atreveria a dizer que beirava não só o improvável, mas também o impossível, sendo simultaneamente casual e causal, surgia a máquina.
E qual máquina? Justamente a que florescera no Universo Feminino, ou seja, um TEAR.

Ao invés do delicado e detalhista procedimento de beleza artesanal, a ação mecânica da máquina barulhenta, que não pretendia e, talvez, nem soubesse criar. Sabia multiplicar peças iguais, o que ensejou que se começasse a falar em produzir e consumir, em oferta e procura. Era a máquina que tinha uma simbólica identidade que a colocava, ao natural, em lugar destacado no Mundo Feminino.

A mulher, que se desincumbira do papel da “gata borralheira”, em todo tempo das Corporações: fazendo muito e aparecendo pouco, vê surgir, na Londres dos primeiros cinquenta mil habitantes (números não confiáveis) também as primeiras fábricas. Eram as oficinas totalmente revisitadas no aspecto e no seu desenho produtivo e estrutural. Surgiam os primeiros patrões e os primeiros empregados, “descendentes” funcionais dos “companheiros sem Companhia” e dos “colonos urbanizados”.

A nova época, com a máquina primitiva, com as oficinas fechadas ou fechando, com os expulsos do campo acreditando no sonho da cidade feliz, traria o desenho primitivo do emprego (mas também o do desesperador desemprego). O portão da fábrica, que começara acolhedor se transformara em barreira cruel.

O novo tempo mexia com a família. E mexeu também com Marx e Leão XIII. E mexeu com a humanidade, a cada dia e todos os dias.

Sair da versão mobile