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O turismo voltou, mas não como o conhecíamos

Apesar de todas as suas falhas, o setor merece ser trazido de volta à vida. (Foto: Reprodução)

O setor de viagens rezava para que esse fosse o dia em que as coisas começariam a voltar ao normal, e, de certa forma, estavam começando mesmo. Na vistoria de segurança, pus minha pasta de dente em um saquinho transparente; a memória motora me fez passar, meio adormecido como estava, pela rotina do raio-X e da esteira rolante.

O aeroporto de Heathrow, em Londres, está com apenas dois de seus quatro terminais abertos, mas o painel de embarques estava surpreendentemente cheio. As butiques da Prada, da Dior e da Hermès estavam todas abertas, as pessoas experimentavam óculos escuros por cima das máscaras, borrifavam-se com perfumes e compravam Toblerones gigantes, três ao preço de dois.

Na sala de espera da British Airways, havia até champagne. Os passageiros
aparentemente estão tomando mais champagne do que nunca, brindando o fim de seu confinamento (e incentivados pelo fato de que agora fazem o pedido pelo aplicativo do smartphone em vez de ter de fazê-lo a um ser humano). “Embora a covid tenha nos isolado, a viagem nos reúne — queremos começar a olhar para fora de novo”, disse Grant Shapps, o secretário dos Transportes do Reino Unido, ao anunciar a retomada das viagens  internacionais.

Boa parte do mundo sente o mesmo. Em toda a Europa Ocidental, a capacidade dos voos subiu 25% na semana retrasada e planos de um “passaporte de vacinação”, o Atestado Verde Digital, estão em fase de conclusão. Nos Estados Unidos, a obrigatoriedade de uso de máscara está sendo suspensa e as linhas de cruzeiro começam a desatracar os navios. Na China, algumas companhias aéreas e operadoras de excursões informaram que as reservas para o Dia do Trabalho deste mês tinham ultrapassado os níveis pré-pandemia.

No segundo semestre do século XIX, os turistas já eram comparados a animais
incapazes de pensar, descritos coletivamente como rebanhos, manadas e maltas de seguidores. Paradoxalmente, ver o mundo estava se tornando uma aspiração cada vez mais universal, com a necessária crença simultânea em duas ideias contraditórias possibilitada pela distinção emergente entre o “viajante” em pleno gozo do livre-arbítrio e o turista semelhante a um rebanho de ovelhas. “Todo inglês no exterior, até prova em contrário, gosta de se considerar um viajante, e não um turista”, escreveu Evelyn Waugh em 1930.

A raiz dessa estigmatização, argumenta o intelectual italiano dedicado à teoria social Marco D’Eramo em “Il selfie del mondo” (A selfie do mundo), é a raiva da ascensão social, da possibilidade de uma classe social alcançar a outra. “As fases do crescente desprezo pelo turista correspondem à propagação da viagem de lazer, da nobreza para a burguesia (século XIX) e da burguesia para o proletariado (século XX).”

No século XXI, o turismo explodiu, o número de desembarques internacionais disparou de 700 milhões em 2000 para 1,5 bilhão em 2019. Há filas no Everest; manifestações de protesto em Barcelona e em Florença. O tsunami do turismo empurrou a antiga animosidade para níveis sem precedentes, mas há novos fatores também.

Por um lado, os críticos apontam para o papel das viagens na disseminação do
coronavírus. Eles têm razão: vários estudos mostraram que os turistas foram
responsáveis por semear focos tanto do vírus original quanto das novas variantes. (O que repugna ainda mais é que uma doença letal que aflige desproporcionalmente os pobres do mundo tenha sido propagada por grupos de turistas ricos reunidos para beber em bares quentes e úmidos depois de esquiar) No Reino Unido, a ética de passar férias está deixando os políticos confusos: na semana em que seu próprio partido legalizou as viagens ao exterior, Lord Bethell, o ministro da Saúde britânico, do Partido Conservador, alertou: “Viajar não é para este ano — por favor, fique no país”.

Há também a questão da sustentabilidade, acelerada a partir de uma causa de nicho para uma preocupação convencional pelas manifestações do movimento Extinction Rebellion e por ativistas como Greta Thunberg. Eles têm razão também: as melhorias na eficiência dos aviões não acompanharam o número crescente de voos, o que aumentou o total das emissões de carbono da aviação em 29% entre 2013 e 2019.

Somado, o resultado é que o velho artifício — repudiar as lamentáveis hordas de turistas enquanto se deleita em suas próprias viagens — corre o risco de ir por água abaixo. Algumas pessoas falam hoje com orgulho de serem “isentas de voo” no mesmo tom em que falariam que são veganas. Um movimento antiviagens está ganhando impulso; em alguns círculos, histórias sobre lugares remotos deixaram de ser símbolos de cultura geral para passar a compor algo parecido com confissões secretas de culpa.

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