Entre todas as ferramentas que as agências de saúde desenvolveram ao longo dos anos para combater as epidemias, pelo menos uma permaneceu uma constante por mais de um século: os certificados de vacinação em papel.
Na década de 1880, em resposta a surtos de varíola, algumas escolas públicas começaram a exigir que alunos e professores mostrassem cartões de vacinação. Na década de 1960, em meio a epidemias de febre amarela, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou um documento de viagem internacional, conhecido informalmente como cartão amarelo. Mesmo agora, os viajantes de certas regiões são obrigados a mostrar uma versão do cartão nos aeroportos.
Agora, quando os EUA estão aplicando as primeiras doses da vacina contra o vírus, o ingresso para a reabertura do país está definido para vir em grande parte na forma de uma credencial digital de saúde. Nas próximas semanas, as principais companhias aéreas, incluindo United, JetBlue e Lufthansa, planejam apresentar um aplicativo de passaporte de saúde, chamado CommonPass, que pretende verificar os resultados dos testes de vírus dos passageiros – e em breve, registros de vacinação. O aplicativo emitirá códigos de confirmação permitindo que os passageiros embarquem em determinados voos internacionais. É apenas o início de uma busca por credenciais digitais que em breve poderão ser adotadas por empregadores, escolas, acampamentos de verão e espaços de entretenimento.
“Esta é provavelmente uma nova necessidade comum com a qual teremos que lidar para controlar e conter essa pandemia”, diz Brad Perkins, diretor médico da Commons Project Foundation, a organização sem fins lucrativos de Genebra que desenvolveu o aplicativo CommonPass.
O advento das credenciais eletrônicas de vacinação pode ter um efeito profundo nos esforços para controlar o coronavírus e restaurar a economia. Elas poderiam levar mais empregadores e campi universitários a reabrir. Elas também podem dar paz a alguns consumidores, dizem os desenvolvedores, ao criar uma maneira fácil para cinemas, navios de cruzeiro e estádios esportivos admitirem apenas aqueles com vacinas contra o coronavírus documentadas.
Mas os passes digitais também levantam o espectro de uma sociedade dividida entre quem tem e quem não tem passe de saúde, principalmente se os espaços começarem a exigir os aplicativos como ingressos. As ferramentas podem dificultar o trabalho ou a visita de pessoas com acesso limitado a vacinas. Especialistas em liberdades civis também alertam que a tecnologia pode criar um sistema invasivo de controle social, semelhante à vigilância intensificada que a China adotou durante a pandemia – apenas em vez de governos federais ou estaduais, atores privados como empregadores e restaurantes determinariam quem pode ou não acessar serviços.
“A proteção da saúde pública tem sido historicamente usada como uma desculpa para a discriminação”, disse a professora Michele Goodwin, professora de direito que dirige o Centro de Biotecnologia e Política Global de Saúde da Universidade da Califórnia. “Essa é a verdadeira preocupação – o potencial de usar esses aplicativos como proxies para manter certas pessoas longe e fora.”
Ela acrescentou que os desenvolvedores de tecnologia geralmente se apressam em implantar e dimensionar inovações antes que os governos tenham a chance de testá-las e regulamentá-las.
Nos EUA, por exemplo, o governo federal planeja distribuir cartões de registro pessoais para pessoas que recebem vacinas contra o coronavírus para lembrá-las de seu provedor médico, fabricante da vacina, número do lote e data da inoculação. Mas as agências federais de saúde ainda não emitiram orientações sobre as credenciais de vacinação digital de terceiros, deixando em aberto para que empresas e organizações sem fins lucrativos apresentem aplicativos de passe de saúde relacionados à covid-19. Nem o Departamento de Saúde e Serviços Humanos nem os Centros de Controle e Prevenção de Doenças responderam aos pedidos de comentários.
Organizações sem fins lucrativos e empresas de tecnologia que desenvolvem esses aplicativos dizem que seu objetivo é criar credenciais tão confiáveis quanto o cartão amarelo de papel da OMS. E eles argumentam que os aplicativos de smartphone – que as pessoas podem usar para recuperar seus resultados de teste de vírus e imunizações diretamente de seus provedores de saúde – são mais confiáveis do que documentos de saúde em papel, que podem ser falsificados.