A democracia no Brasil é uma criança que teima em crescer em um terreno acidentado, daqueles que dificultam uma caminhada sem tropeços. Desde a independência, em 1822, a nação passou mais da metade do tempo sob regimes totalitários, considerando-se a monarquia e as ditaduras do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e militar (1964-1985), em que a tônica foi a repressão, a perseguição política, a censura, o esfacelamento das instituições, os assassinatos e as torturas. As informações são da revista Veja.
Os anos de chumbo pareciam enterrados com a chamada “Constituição cidadã”, de 1988, e o retorno das eleições diretas, em 1989. Pouco mais de três décadas depois, no entanto, o país se vê às voltas com esse fantasma, na forma de discursos que louvam figuras indesejáveis do passado, citações ameaçadoras de instrumentos totalitários como o abominável Ato Institucional Nº 5, o AI-5 — ferramenta responsável pelo endurecimento da repressão nos anos 60 —, gestos de aparelhamento que eliminam de órgãos públicos pessoas não alinhadas com o pensamento dos poderosos de plantão, combate furioso à imprensa e desprezo a instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.
Boa parte da onda é comandada pelo próprio Jair Bolsonaro, que não faz questão nenhuma de esconder seu apreço a tudo isso, com o apoio de gente do seu entorno, como o filho Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o deputado mais votado do país em 2018, de alguns ministros e de seguidores radicais do governo. O coro é engrossado por uma parcela da população que inunda as redes sociais com palavras de ódio e, nas ruas, protagoniza gestos como atirar tomates em cartazes com fotos de ministros do STF.
Ironicamente, é a democracia que garante ao presidente e a todas essas pessoas o direito de se expressar sem amarras, mesmo que seja para louvar os tempos em que não havia essa mesma liberdade.
O consolo diante desse panorama vem de uma constatação: a grande maioria do país não compactua com essa recaída autoritária, como demonstra a pesquisa exclusiva VEJA/FSB, que ouviu por telefone 2.000 eleitores de 26 Estados e do Distrito Federal entre 29 de novembro e 2 de dezembro. Quase 80% dos entrevistados acreditam que a democracia é sempre, ou na maior parte das vezes, o melhor sistema de governo. Apenas 10% apontaram a ditadura como uma alternativa ideal.
O mesmo levantamento, porém, também trouxe um alerta: 40% dos consultados acham que é média, grande ou muito grande a possibilidade de o Brasil virar novamente uma ditadura. Outros 28% acreditam que essa possibilidade é pequena — e só 26% estão razoavelmente tranquilos nesse aspecto. Em resumo, embora a população continue professando a fé na democracia, uma fração considerável dela enxerga o risco de nuvens negras no horizonte.
Como explicar esse temor em um país que não tem nenhum clima de agitação nos quartéis, onde as instituições funcionam e há liberdade de expressão? Infelizmente, a conhecida fixação de Bolsonaro pela ditadura militar tem parte da responsabilidade pelo fenômeno. Quando ainda era um inexpressivo deputado federal, todos os anos, em 31 de março, ele cumpria religiosamente um rito. Subia à tribuna da Câmara para celebrar o aniversário do golpe militar — nas palavras dele, a “segunda independência do Brasil”. O plenário geralmente estava às moscas e pouca gente se importava com o que ele dizia.
Hoje, como presidente, suas palavras são ouvidas por todos e têm muito mais peso. Em março, ele orientou os quartéis a comemorar o dia do golpe de 1964. A ordem não pegou bem nem entre a cúpula militar, que vê a ditadura como uma página virada. Em agosto, recebeu em Brasília Maria Joseíta Silva, viúva do coronel e torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem chamou de “herói nacional”. Em setembro, o filho Zero Dois, vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), tuitou que, “por vias democráticas, a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade almejada”. Em outubro, foi a vez de o Zero Três, Eduardo, declarar em uma entrevista que se a esquerda radicalizasse uma resposta possível seria a edição de “um novo AI-5”.
Por motivos eleitorais, a verdade é que tem muita gente interessada nesse clima de radicalização. O discurso bolsonarista se alimenta do ódio à esquerda — e vice-versa —, e ambos saem ganhando desse jogo perigoso de polarização. Exemplo mais recente disso é a nova projeção para as eleições presidenciais de 2022, na qual o presidente e o seu rival Lula aparecem com destaque. Portanto, nada é por acaso. Ao acusar o petismo de ter feito um governo comunista quando comandou o país, entre 2003 e 2016, Bolsonaro sabe que a retórica contra a foice e o martelo rende apoio, mesmo três décadas após a queda do Muro de Berlim.
