As duas Turmas do STF (Supremo Tribunal Federal) têm entendimentos divergentes sobre a concessão de habeas corpus. Enquanto a Primeira Turma é favorável, total ou parcialmente, a 16% dos pedidos, a Segunda decide pró-réu em 40% dos casos, mostra levantamento feito pelo Estado com base em dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação.
A discrepância nos julgamentos finais de habeas corpus – pedidos de liberdade após a prisão ou preventivo para impedir a detenção – revela uma “roleta-russa”, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. A consequência, dizem, é insegurança jurídica e perda de legitimidade da Corte, uma vez que a decisão depende mais da turma ou do relator do que da própria lei. Advogados de políticos, parte de investigados na Operação Lava-Jato, afirmam que há uma “clara divisão” no Supremo.
Os dados analisados são referentes a julgamentos entre junho de 2015 – mês em que o ministro Edson Fachin, penúltimo a entrar, passou a integrar a Corte – e outubro deste ano. Na semana passada, antes do recesso do Judiciário, os ministros expediram uma série de decisões divergentes, como a soltura de investigados na Lava-Jato e a ordem de cumprimento imediato da pena do deputado federal Paulo Maluf (PP-SP).
Reservadamente, um ex-ministro do STF disse à reportagem que é uma tradição a Segunda Turma conceder mais habeas corpus do que a Primeira. Para ele, uma das explicações seria que os ministros mais antigos e, segundo ele, “mais experientes”, estão no segundo colegiado, com exceção de Marco Aurélio Mello. Ele nega que a pressão da opinião pública influencie as decisões, mas diz que há um impulso dos magistrados em “dar satisfação ao público”.
Após o julgamento do mensalão, houve mudança no regimento das Turmas com o objetivo de “desafogar” o plenário. Os colegiados ganharam maior protagonismo e passaram a julgar ações penais de parlamentares, desde 2014. Processos relacionados ao presidente da República e a seu vice, a presidentes da Câmara e do Senado, a ministros da Corte e ao procurador-geral são competência do plenário.
Para o professor de Direito da USP e PUC-SP André Ramos Tavares, “as turmas operam de maneira independente, como se fossem dois tribunais”, uma vez que “o modelo permite essa discrepância”. “A mudança brusca, repentina e constante da jurisprudência é motivo de descrédito. A Justiça não tem de ficar amarrada, nem ser sempre unanimidade, mas o excesso de divergência é mal visto no próprio âmbito jurídico, deslegitima a Corte.”
Até ministros do STF reconhecem a disparidade. Gilmar Mendes, da Segunda Turma, em julgamento em setembro no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), do qual também é presidente, chamou a Primeira Turma de “câmara de gás”. De volta, ouviu do ministro Herman Benjamin que o segundo colegiado seria, então, o “Jardim do Éden”.
“Não é que se tem uma câmara de gás e um Éden. São dez possibilidades diferentes, de diferentes níveis de câmara de gás e Éden. As Turmas decidem em um contexto de ‘roleta-russa’”, afirma Ivar Hartmann, professor da FGV-RJ e coordenador do Supremo em Números. “Isso traz insegurança jurídica e é um problema de legitimidade.”
Políticos
Embora os dados não detalhem quais processos envolvem políticos ou a Lava-Jato, advogados desses casos reclamam da divisão entre as turmas. “Eles (ministros da Primeira Turma) estão desrespeitando a legislação, tratando como definitiva uma prisão provisória. Estão entrando em mérito de acusação, o que não deveria caber às autoridades que julgam prisão preventiva e muito menos à Suprema Corte”, diz Délio Lins e Silva Júnior, um dos advogados de Eduardo Cunha.
Roberto Podval, advogado do ex-ministro José Dirceu, afirma já até prever o posicionamento dos ministros. “A gente conhece como votam e chega a saber o que eles pensam, porque o voto é o retrato do pensamento de cada um. Aí, tenta trabalhar a defesa dentro da filosofia de cada qual”, diz.
Caducados
Outro dado mostra que a Primeira Turma avaliou que 489 pedidos de liberdade não tinham mais razão de serem analisados pela Corte – processos chamados de “prejudicados” –, enquanto a Segunda Turma teve a mesma decisão apenas três vezes, de junho de 2015 até outubro deste ano.
O pedido pode ser prejudicado, por exemplo, se o réu tiver a prisão preventiva convertida em definitiva em outra instância ou ser libertado. O levantamento revela ainda que 89% das decisões finais sobre habeas corpus foram monocráticas. Das 16.403 ações julgadas, mais de 14 mil foram por decisão de um ministro.