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Um falso dilema

O colapso hospitalar em muitos estados brasileiros e o recrudescimento da COVID-19 no País expõe uma versão ainda mais perversa do negacionismo, fenômeno agora embalado com traços cínicos, numa afronta desavergonhada à realidade dos fatos, reprisando teimosamente os mesmos erros de interpretação que a ciência e os números cabalmente provaram estar equivocados. Após mais de 255.000 mortes, seria necessária uma autocrítica por parte daqueles que não apenas minimizaram os efeitos da pandemia desde o seu início, mas defenderam remédios sem eficácia, desdenharam do uso de máscaras e “normalizaram” o morticínio com espantosa naturalidade. No que nos transformamos? Que espécie de sociedade assiste indiferente a uma tragédia cuja cura demanda solidariedade, empatia e esforço mútuo, porém demonstra justamente o oposto: individualismo, indiferença e falta de compaixão? O comportamento inconsequente e irresponsável, observado em vários lugares, convoca-nos a uma profunda mudança no tipo de escolhas que estamos fazendo.

Existe natural e justa preocupação com os efeitos da atual pandemia sobre a vida econômica. Milhões de empregos estão sendo perdidos ou ameaçados, elevando o drama das famílias e impondo programas de apoio financeiro que permitam uma sustentação provisória digna para essas pessoas. Sabemos também que haverá reflexos na própria saúde pública, após o controle da pandemia. Tudo isso é importante. Mas também é muito grave, necessário frisar, o equívoco cometido pelo Governo Federal na abordagem inicial do problema, falha que redundou na ausência de proatividade, especialmente no desenvolvimento de vacinas, na falta de conscientização da população e na inexistência de uma ação unificada. Essa incapacidade de enxergar estratégica e empaticamente a situação, potencializou os efeitos já devastadores da própria doença, e piorou as expectativas em relação ao futuro, que agora se revela em cores dramáticas. Por isso é tão relevante destacar: não existe dicotomia entre saúde e economia. Ambas pertencem ao mesmo constructo, imbrincadas e interdependentes. Um País doente não produz, e um País incapaz de cuidar da saúde de seus cidadãos falha terrivelmente em um dos pressupostos elementares de qualquer acordo social digno. Colocar a vida em primeiro lugar não significa menosprezar o trabalho, o emprego, antes pelo contrário. Priorizar a vida é fortalecer o fator antecedente de tudo, sendo a banalização da morte uma afronta à própria dignidade de nossa existência.

Os países com os melhores resultados no controle da pandemia tiveram o entendimento prévio de que a luta contra a Covid-19 seria um jogo de equipe, um esforço colaborativo contra um inimigo comum. Também a coesão social, fatores estruturais, níveis de educação, moradia, pobreza e tantos outros, devem ser considerados como elementos que compõem qualquer proposta de intervenção, que não é simples, e por isso mesmo precisa do envolvimento de muitos. É evidente que uma agenda compartilhada, permeada pelo diálogo amplo entre o Estado e a sociedade, comprovadamente também facilita a implementação das medidas necessárias para o combate ao vírus. Lamentavelmente no Brasil, a falta de uma adequada coordenação entre os entes federativos transformou o que seria um esforço comum numa disputa de egos, num palco onde a vaidade não se envergonhou em mutilar a decência e a compostura, na pior versão da má política.

É imprescindível reconstruir os elos de confiança mútua que foram quebrados, e reconhecer que o enfrentamento à pandemia deve ser coletivo, e de cada um de nós em particular. Para isso, não é mais possível negar ou esconder a realidade. Somente enfrentando com destemor os detratores do bom senso, e apostando na cooperação, é que poderemos sair vitoriosos desse trágico episódio que assola todo o País e o mundo inteiro. Sem esse reencontro com o diálogo, o Brasil continuará perigosamente dividido, no momento histórico em que mais decisivamente precisa trilhar um só caminho.

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