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Vítimas de estupro em hospitais revivem as próprias dores após prisão de anestesista

Médico anestesista virou réu pelo crime de estupro de vulnerável durante parto em hospital no Rio de Janeiro. (Foto: Reprodução)

Aos 21 anos, Maria (nome fictício) havia dado entrada no Hospital municipal Pedro II, em Santa Cruz, para o parto do segundo filho. Uma série de complicações após o nascimento do menino, porém, levou a mulher a ser internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), onde passou a lutar pela vida. Cerca de duas semanas depois, o calvário físico somou-se a um trauma que, transcorrida quase uma década, ela ainda carrega.

Abusada por um técnico de enfermagem em 2013, a jovem viu todo o sofrimento associado ao crime emergir com força nos últimos dias, depois que o anestesista Giovanni Quintella Bezerra, de 31 anos, foi preso em flagrante por estuprar uma gestante no Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.

— Quando vi as notícias, a primeira coisa que pensei foi: “Isso ainda está acontecendo, meu Deus? De novo?” E, na mesma hora, voltou toda a sensação da época. Toda a angústia. É uma tristeza que ainda trago em mim, e não sei se isso vai mudar um dia — conta Maria, cuja voz ainda embarga ao revirar essas memórias.

Acometida por uma infecção generalizada severa, a jovem tivera, dias antes, o útero, as trompas e os ovários retirados. Era madrugada e, com dores excruciantes, Maria gritava de dor em uma UTI quase vazia. Um profissional se aproximou e disse que a examinaria para, em seguida, buscar um remédio.

— Eu acreditei, dei graças a Deus que alguém tinha aparecido. Aí ele começou a me alisar toda, passou a mão nos meus seios, me acariciou. E chegou nas partes íntimas — lembra Maria. — Àquela altura, internada há tempos, eu sabia exatamente a diferença entre um exame e aquilo. Foram 20 minutos nisso, e ele nem buscou o remédio depois. Dali em diante, passei a ter medo do hospital. Mesmo sentindo dor, eu simplesmente não chamava ninguém, porque tinha medo de acontecer outra vez.

“Paciente angustiada”

Maria contou sobre o ataque ao então companheiro e para alguns parentes próximos. Comunicado da grave denúncia, o hospital improvisou um leito para a jovem na “sala vermelha”, porta de entrada para pacientes graves, mas não contatou nenhuma autoridade.

O caso só veio à tona quando uma vistoria do Ministério Público estranhou a localização da paciente, que apresentava um quadro de miocardite (inflamação no músculo cardíaco) e deveria estar na UTI. Coube à acompanhante de Maria informar que ela própria não queria retornar à unidade intensiva devido ao estupro. “A paciente estava visivelmente angustiada”, escreveram os promotores ao relatar os resultados da fiscalização.

A Secretaria municipal de Saúde informou que “preza pelo atendimento humanizado”, que “trata com a devida seriedade qualquer eventual denúncia” e que a direção do Pedro II “tomou as medidas administrativas cabíveis na ocasião, afastando o profissional acusado e se colocando à disposição para colaborar com o que fosse solicitado”.

Já Giovanni Bezerra só foi desmascarado porque a equipe de enfermagem, desconfiada da postura do anestesista, decidiu filmá-lo com um celular escondido, que registrou o abuso. A polícia acredita que, até ser flagrado, o médico pode ter feito mais de 50 vítimas.

Sem desfecho

Sem provas tão categóricas quanto um vídeo, responsabilizar os agressores torna-se, muitas vezes, outra provação para a vítima. Maria só foi chamada a depor mais de um ano após o estupro. Na delegacia, ouviu de um agente que “o enfermeiro era gay” e tinha “ótimo histórico”. Desde então, ela nunca foi informada de nenhum novo desdobramento.

— Cheguei a descobrir o endereço dele por conta própria, fui até lá, vi as roupas dele no varal. Aquilo me embrulhava o estômago, mas o que eu poderia fazer? — desabafa Maria, que hoje, aos 31 anos, parou de trabalhar em virtude de incontáveis problemas médicos decorrentes do período internada, que também a deixou infértil:

— Olhando para trás, me arrependo de não ter feito mais, falado mais, denunciado com mais força. Nenhuma mulher merece passar por isso, ainda mais em um hospital.

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