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Colunistas Uma recordista imbatível

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Um professor atento e solidário ensinou Ledinha a nadar. (Foto: Carlos Cecconello/Folhapress)

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

A mocinha tem comprometedoras deficiências. Encontra-la, ou melhor, conhece-la, foi consequência de uma demora no atendimento de um médico (meu cliente e de quem ela é paciente). Enquanto estávamos, na sala de espera, ela, sorridente, pilotava movimentos múltiplos de sua sofisticada cadeira de rodas.

Quando cheguei, dialogava com um casal – ambos faziam questão de mostrar seu vocabulário médico – repetindo que eram cardiopatas e o doutor “muito boa gente”. Além deles, um rapaz de seus 25 anos, submerso no seu celular, tinha um ar de enfado, como querendo dizer “minha turma é outra; não percam tempo; não falem comigo”.

Foi quando ouvi a explicação da Ledinha, a menina com deficiência severas. As pernas não tinham a menor utilidade (expressão da própria). Não respondiam aos comandos cerebrais. Com a maior franqueza, sintetizou; “elas só me atrapalham, porque, além de não ajudarem, pesam muito e tenho de carrega-las”.

Meti-me na conversa e ela explicou que seus problemas eram de nascença, quando os sentia mais gravosos. Dizia coisas que tais e mantinha o seu rostinho bonito, iluminado por uma energia, cheia de simpatia. Tinha uma disposição verdadeira de sorrir, que a fazia ainda mais bela e sedutoramente simpática.

Deu atenção a todos (da enfermeira que a saudou fraternalmente até o rapaz casmurro que teve vergonha de assuntar, mas chegou a desligar o celular que o escravizava e pôs-se a fazer acenos de cabeça, apoiando a narrativa alegre da Le). Confessara que assim a chamavam em casa.

Além das pernas inúteis, contou-nos que não dominava o braço esquerdo; que se movimenta por conta própria, totalmente – como disse, com resignação e sem tom dramático – fora de qualquer plano articulado. E o fazia, reiteradas vezes, não só não ajudando, como atrapalhando.

Enquanto a espera médica se delongava, descobrimos que ela era de Canguçu (distante 50 quilômetros de Pelotas, onde se passa essa cena); que um professor, atento e solidário, ensinou-a a nadar; que para isso vinha – em busca de piscina térmica – três ou quatro manhãs por semana.

Fez-se uma nadadora, o que não a impediu de continuar estudando, chegando agora, aos 24 anos, ao último semestre do Curso de Direito (e já me foi dizendo que escolhera para o Trabalho de Conclusão de Curso o Direito Esportivo).

Fiquei estupefato com tanta coragem de fazer e uma sadia ousadia de tentar. Sem qualquer vaidade – a não ser na medida justa dos vitoriosos – contou que, na sua categoria, é campeã nacional de 50 e 100 metros, estilo livre, e que já tem medalhas nacionais e internacionais conquistadas em piscinas pelo mundo, palco de batalhas emocionantes.

Não chegou a se queixar (pareceu-me que essa postura não faz parte de suas reações nem emotivas, nem emocionais) mas revelou que é recordista nacional na sua especialidade tendo, inclusive, atingido o índice que a habilitaria a disputar a Paraolimpíada. Na hora “h” foi surpreendida com a sua não convocação, sendo a “sua” vaga ocupada por outra de quem ela ganhara em várias competições. Registro, apenas; elegante, sequer reclamou. Fiquei pensando: é por essas e por outras que se precisa de “Lava-Jato” em muitas áreas. Secas e molhadas…

Quando a enfermeira avisou que logo o médico atenderia, Le (que não tem apoio das pernas, cujo braço esquerdo estorva ao invés de ajudar, vítima de uma doença séria e contundente, que é sua má companhia desde o nascimento) nos revelou: “tenho uma admiração profunda pelo Arturzinho que, apesar de ter os dois braços não desenvolvidos – são curtíssimos – diminutas e estranhas formações, encravadas à altura do peito, é medalha paraolímpica”, empolgada com o que ele realiza, enfrentando deficiências.

Não lhe disse nada, enquanto ela dirigia sua cadeira para o interior do consultório mas, desde então, um pensamento não me abandona: da para a gente ainda acreditar na espécie humana (em parte, pelo menos) enquanto existirem pessoas como a Ledinha, cuja vida é uma obstinação de bondade e que tem ânimo e tempo – mais, muito mais do que isso – para torcer e se solidarizar com o Arturzinho. Para ELA, numa generosidade autêntica e, por isso, saudável, ELE, sim, vencedor verdadeiro contra as deficiências.

Talvez os “Cartolas” da Paraolimpíada, que a deixaram fora da competição tivessem razão: a Ledinha já era e continuará sendo medalha de ouro de (e em) todas as Paraolimpíadas. O seu record ninguém conseguirá superar.

PS: ao ver e ouvir a Ledinha, a feliz jovem das severas deficiências, não pude deixar de invocar a frase poética e profética de Antonio Machado: “todo depende del color del cristal con que se mira”.

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

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Balanço antes do capítulo final
Maracutaia silenciosa
https://www.osul.com.br/uma-recordista-imbativel/ Uma recordista imbatível 2017-06-09
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