Quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Por Redação O Sul | 14 de janeiro de 2018
A tradição brasileira de contradições entre discurso e prática na administração pública ganhou força na última semana, com cenas explícitas da desarmonia entre os currículos de indicados a cargos públicos e as características básicas que as funções deveriam exigir.
Além dos casos já conhecidos — como o da deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), escolhida para o Ministério do Trabalho e condenada por dívidas trabalhistas —, o jornal O GLOBO reuniu outros relatos sobre indicados pagos com o dinheiro do contribuinte e cujos comportamentos entraram em choque com o papel que deveriam exercer.
Há a história de um juiz, proprietário de terras, que forçou sua participação na análise de uma disputa que envolvia seu próprio terreno; e a do secretário estadual de um governo em grave crise financeira acusado de usar recursos públicos para pagar a funcionários que trabalhavam em sua casa.
Existe ainda o carcereiro com tornozeleira eletrônica e o delegado pago para investigar crimes e preso por cobrar propina a fim de evitar que informações fossem reveladas.
Outro caso emblemático envolve o novo diretor do Detran de Minas Gerais, César Augusto Monteiro Alves Júnior, que acumulou 120 pontos na carteira de motorista, em função de irregularidades cometidas no trânsito — e só entregou o documento depois de o fato ser revelado pela imprensa. A lei estabelece a apreensão da habilitação, por até um ano, quando a marca de 20 pontos é atingida.
Alves Júnior assumiu o cargo, sorte que Cristiane Brasil não teve, pois a posse foi impedida pela Justiça. No caso da deputada, há ainda um agravante ao descumprimento da legislação trabalhista: a dívida com um dos funcionários era paga por uma assessora lotada em seu gabinete na Câmara dos Deputados. Também ficou conhecido o caso dos policiais militares de Goiás que são réus por tortura e foram promovidos na hierarquia da corporação.
A “naturalização” de certos comportamentos, especialmente no âmbito governamental, é uma das explicações para o paradoxo do descolamento entre o que se espera do poder público e o que de fato proporciona.
“Práticas não republicanas e trocas patrimonialistas passaram a ser vistas como normais. Ficou natural um parlamentar admitir que fez um acordo para votar em troca de uma verba liberada. A gente já teve mais enraizada a ideia de que quem está numa função pública precisa ter autoridade moral. Os sintomas são esses: afrouxamento da ética e degradação de expectativas”, avalia o mestre em Administração Pública José Marcelo Zacchi.
Os paradigmas quebrados pela Operação Lava-Jato, que prendeu e condenou políticos e empresários em série, ainda não é suficiente. Para Marcio Tavares d’Amaral, professor da UFRJ e pós-doutor em Filosofia, o Estado foi se tornando um “objeto de negociação”, deixando de representar os interesses da sociedade.
Para ele, a opinião pública, que já funcionou como um mecanismo de controle de pressão, já não tem a mesma força: “Conforme o governo e os políticos se descolam da população, e a vida do Estado se torna autônoma, a opinião pública passa a ser só uma opinião.”
Sobre Cristiane Brasil, Michael Mohallem, professor da FGV Rio e doutorando em Direito Público, diz que a insistência do governo é explicada por uma característica rara: um presidente que não precisa ser popular. “A sustentação política vem do Congresso e da sintonia com a elite econômica. E o PMDB não tem o projeto político de disputar o protagonismo, basta estar na chapa como vice”, conclui.