Quarta-feira, 08 de outubro de 2025
Por Redação O Sul | 20 de janeiro de 2020
Ela canta o “sarará crioulo”; ele, o “cabelo pixaim”. Ela espalhou pelo País a Música Preta Brasileira, e ele transformou a canção “Identidade” em símbolo contra o racismo. Em 1984, compartilharam o sucesso estrondoso de “Enredo do meu samba”, versos dele cantados por ela na abertura da novela “Partido alto”. E agora, depois de mais de quatro décadas de carreira, Sandra de Sá e Jorge Aragão experimentam uma sensação nova: vão estrear na Sapucaí como compositores de samba-enredo. Sandra, na Mocidade Independente de Padre Miguel, que homenageia Elza Soares; Aragão, na Unidos da Tijuca, com enredo do carnavalesco Paulo Barros sobre arquitetura.
“Já tive experiência como puxadora, em 1998, quando a Santa Cruz homenageou Cazuza. E já fui enredo na Cordovil e na Embalo Carioca. Mas é a primeira vez que componho para um desfile”, conta Sandra, que assina a parceria com Igor Vianna, Jefferson Oliveira e Renan Diniz, entre outros. “Fiquei impressionada com o amor dos compositores pela escola, a paixão que eles colocam ao escrever. E uma música sobre Elza Soares tinha mesmo que ser para cima, alegre até ao falar das lutas, porque ela passou por muita coisa, mas sempre saiu vitoriosa. O curioso é que minha primeira lembrança de Elza é de não podermos falar o nome dela em casa, nos anos 60, por causa daquele estigma absurdo de “destruidora de lares” (epíteto que Elza ganhou quando iniciou um romance com o jogador Garrincha, ainda casado na época).”
Aragão, que já foi comentarista dos desfiles, não chegou a vivenciar o carnaval de perto. Quando pequeno, morava em Padre Miguel, e ouvia o vento trazer o som da bateria da Mocidade. Mas nunca frequentou escola alguma. Sua relação com a batucada só se concretizou na quadra do Cacique de Ramos.
“Compor para escola é outra praia, tem que respeitar o tema. Achei que a melodia podia ser solta, mas também existem regras. Tem até a “defesa” do samba-enredo: um documento que explica aos jurados o motivo de cada verso estar ali”, diz Aragão, que assina o samba com Dudu Nobre, entre outros parceiros. “Para testar se estava ficando bom, meus companheiros cantavam com as mãos pro alto, vibrando, como se estivessem na avenida! Foi tudo novidade para mim.”
Sandra conta que sempre foi foliona. Quando pequena, em Pilares, sua mãe a vestia de azul para ver a Caprichosos passar. Elas caminhavam ao lado da escola, e a menina achava que realmente tinha desfilado. Quando cresceu, o coração abriu espaço para o verde e rosa da Mangueira. E, agora, se encantou pela Mocidade, onde vai se apresentar no próximo dia 25, em show ao lado de Elza Soares:
“A disputa de samba-enredo, em que a escola elege o vencedor, lembrou minha adolescência. Voltei aos tempos do meu começo na música, nos festivais do colégio. O clima é parecido. E esse ano na Mocidade concorri com vários amigos. Paulo César Feital, Altay Veloso e Paulinho Mocidade estavam lá com outros sambas.”
Não foi só nessa hora que Sandra abriu a cortina do passado. No encontro dos músicos, realizado no Hotel Wyndham Barra, o assunto viajou para 1984, quando a abertura da novela das oito “Partido alto” trazia “Enredo do meu samba”, composição de Jorge Aragão com Dona Ivone Lara, na voz de Sandra de Sá. A canção estourou no país inteiro e foi fundamental para a consolidação dos dois artistas, ainda em início de carreira. A interpretação funkeada de Sandra para o samba casava com a temática da abertura, que misturava sambistas e dançarinos de break.
“Essa música foi importante na época para juntar a “crioulada” toda: a turma do samba, do rap, do funk. Foi uma explosão da dança break pelo país, um fenômeno. E serviu para mostrar que eu podia cantar qualquer coisa. Até hoje tem gente que me diz na rua: “Você é uma das minhas sambistas preferidas”. Eu adoro isso!”, diz Sandra, que é diretora da UBC (União Brasileira de Compositores), e está lançando um selo para gravar novos talentos.
Mistura de ritmos
Aragão também sempre foi adepto da mistura. Já gravou a “Ave-Maria” no cavaquinho e compôs “Tape deck”, juntando as tribos do samba e do rap, rimando Zeca Pagodinho com Buchecha & Claudinho:
“Como cantor, eu fico na praia do samba. Mas, como compositor, gosto de arriscar. Estou com 70 anos e ontem à noite fiz um blues!”
Autor de célebres músicas de carnaval, como “Vou festejar” e o tema “Globeleza”, Aragão promete tirar da manga nos próximos dias novos versos para embalar o povo: um samba com espírito de bloco, que bota o dedo na ferida, falando que “não é não” e que “se respeita o homem do homem/ e a mulher da outra mulher”. Se a música vai pegar, Aragão não sabe. Para este carnaval, ele só tem uma certeza:
“Não vou assistir à apuração. É muita responsabilidade fazer samba que vale ponto pra escola. E eu já tenho 20 stents no coração, meu filho!”, diz, com o sorriso de quem já ganhou muitas notas 10 da vida.