Segunda-feira, 22 de dezembro de 2025
Por Régis de Oliveira Júnior | 17 de dezembro de 2025
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editoriais de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
A inteligência artificial não substitui o médico, mas redefine a esperança ao transformar dados frios em tempo de vida para pacientes oncológicos.
A luta contra o câncer mudou de patamar em 2025. Não dependemos mais apenas da sorte ou da tentativa e erro. A inteligência artificial assumiu o papel de copiloto na oncologia, processando bilhões de dados em segundos. O cenário é urgente: segundo as estimativas mais recentes do Instituto Nacional de Câncer (INCA), o Brasil enfrenta cerca de 704 mil novos casos da doença por ano. Cada dígito dessa estatística representa uma família que busca respostas, e a tecnologia agora acelera essa busca de forma sem precedentes.
O desenvolvimento de novos medicamentos é o campo mais impactado pela capacidade computacional. Ferramentas como o AlphaFold 3, da Google DeepMind, revolucionaram a ciência biológica ao prever a estrutura e as interações de moléculas da vida com uma precisão jamais vista. O que levava anos em bancadas de laboratório agora surge em meses nas telas dos pesquisadores. Essa aceleração permite desenhar drogas específicas para tumores que antes eram considerados intratáveis, inaugurando uma era de precisão molecular.
Essa velocidade é potencializada por parcerias estratégicas. A colaboração recente entre o Google e a Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO) exemplifica como o compartilhamento de dados em nuvem pode reduzir o tempo de tratamento. Ao centralizar e processar informações globais, antecipamos descobertas. No entanto, é fundamental que o Brasil não seja apenas um espectador ou fornecedor de dados brutos, mas um protagonista que domina a tecnologia para benefício de sua população.
No diagnóstico, a eficácia é impressionante, especialmente para a saúde da mulher. Um estudo publicado na Nature Medicine em janeiro de 2025 demonstrou a superioridade de sistemas de IA na detecção de câncer de mama. Na mesma linha, ferramentas como o sistema Mia, desenvolvido em colaboração com o Imperial College London, têm ajudado médicos a detectar sinais “invisíveis” e elusivos em mamografias. O algoritmo identifica tumores em estágio zero com precisão cirúrgica. Isso reduz a necessidade de mastectomias agressivas e poupa a paciente de traumas físicos e psicológicos.
Para os homens, o foco no câncer de próstata também colhe frutos tecnológicos. Novos algoritmos analisam ressonâncias magnéticas e cruzam dados genéticos para prever a agressividade do tumor. Isso evita biópsias dolorosas em casos indolentes e direciona o tratamento pesado apenas para quem realmente precisa. A tecnologia permite uma vigilância ativa segura. O médico continua soberano na decisão, mas agora ele tem uma “lanterna” digital que ilumina caminhos antes obscuros.
O Brasil demonstra potencial acadêmico nesse cenário. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram neste ano uma IA capaz de prever a agressividade de 11 tipos diferentes de tumores. A ferramenta antecipa o comportamento clínico da doença, permitindo aos médicos prepararem estratégias de combate antes mesmo da metástase. É a prova de que temos massa crítica e inteligência nacional para liderar, e não apenas consumir inovação estrangeira.
Contudo, a realidade dos consultórios e hospitais brasileiros expõe uma fratura exposta. Enquanto a rede privada de elite em São Paulo e no Rio de Janeiro utiliza o que há de mais moderno, aplicando a IA para personalizar a imunoterapia e reduzir o tempo de internação, o Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta dificuldades básicas de conectividade. A promessa da saúde digital pode aumentar o abismo social se não for bem gerida.
O Ministério da Saúde lançou a Estratégia de Saúde Digital 2020-2028 com o objetivo de conectar a rede e promover a interoperabilidade de dados. Estamos em 2025, na reta final desse prazo, e os avanços, embora existentes, ainda são lentos nas regiões mais pobres. A falta de infraestrutura no Norte e Nordeste impede que a inteligência artificial chegue à ponta. Criamos uma elite que se cura com algoritmos avançados e uma massa que ainda depende de arquivos de papel e exames analógicos.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) já alertou sobre as oportunidades e os desafios da IA na saúde pública. O relatório da entidade enfatiza que, sem uma governança ética e equitativa, a tecnologia servirá para concentrar renda e saúde, em vez de democratizá-las. A redução do tempo de internação e o diagnóstico preventivo não podem ser privilégios de quem tem o melhor plano de saúde. Eles são direitos do cidadão.
A questão da privacidade também preocupa. Para a IA funcionar, seja o AlphaFold, o sistema Mia ou a inovação da USP, ela precisa de dados. Nossas informações genéticas e históricos médicos são o novo petróleo. A segurança desse tesouro é vital. Vazamentos de dados de saúde podem gerar discriminação por seguradoras e empregadores. O sigilo médico corre perigo na era do big data e exige leis rigorosas.
Não questionamos a excelência dos nossos médicos, que fazem milagres diários, nem a competência dos programadores que criam essas soluções. O gargalo é de gestão e política de Estado. A inovação não pode operar em um vácuo social. Precisamos de marcos regulatórios que incentivem a tecnologia, mas que obriguem a sua distribuição justa.
A inteligência artificial é uma ferramenta poderosa e neutra. Quem dá o tom de seu uso somos nós, enquanto sociedade. No combate ao câncer, ela acende uma luz forte no fim do túnel. Mas precisamos caminhar com os olhos bem abertos para garantir que essa luz brilhe para todos os 704 mil brasileiros diagnosticados neste ano, e não apenas para uma parcela privilegiada.
O futuro da oncologia é brilhante e digital. O Brasil tem o talento da USP, a demanda do SUS e o potencial de mercado. Resta saber se teremos a vontade política para transformar bits e bytes em saúde pública universal. A cura deve ser um bem comum, não um produto de luxo na prateleira de uma farmácia digital.

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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