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Por Redação O Sul | 14 de maio de 2018
Algumas das principais universidades do País contribuíram com a ditadura militar do Brasil (1964–1985) por meio da espionagem de alunos e professores. Entregue em março, o relatório final da Comissão da Verdade da USP (Universidade de São Paulo) revela a existência de um setor dentro da reitoria responsável pela perseguição política. Uma estrutura semelhante foi montada pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), de acordo com documento apresentado por pesquisadores.
A Comissão da Memória e Verdade da UFSC concluiu que, durante a ditadura militar, o reitor e membros da administração assumiram o “papel de espionagem, denúncia, censura, repressão e controle ideológico” de alunos e professores. O texto, menciona que, a partir de 1972, durante o governo de Garrastazu Medici, a universidade montou uma estrutura chamada de AESI (Assessoria de Segurança e Informação), que municiava o SNI (Serviço Nacional de Informações).
Formada por militares e civis, a AESI enviava relatórios quinzenais ao SNI, segundo evidências encontradas pelos pesquisadores da comissão. Essa vigilância institucional dentro do campus levou a “demissões, não-contratações e perseguições internas políticas”, segundo o relatório. Ao longo da ditadura, houve dez assassinatos e três desaparecimentos por motivações políticas em Santa Catarina – nenhum deles era estudante da UFSC.
No caso da USP, a Comissão da Verdade estima que até 10% dos mortos ou desaparecidos políticos no Brasil tivessem alguma relação com a instituição. De 434 pessoas que morreram ou desapareceram no país devido a abusos do Estado entre 1946 e 1988, 47 eram funcionários, professores ou alunos da universidade.
Assim como a UFSC, a USP também tinha uma AESI subordinada à reitoria. Segundo a Comissão da Verdade da USP, a AESI colaborou com a perseguição política e reuniu evidências de formatações ideológicas e administrativas no período.
Além de UFSC e USP, ao menos outras cinco universidades apresentaram relatórios de comissões independentes para investigar os efeitos da ditadura militar em sua estrutura interna e o modo de cooperação com os aparelhos de repressão do Estado: UFBA (Universidade Federal da Bahia), PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), UnB (Universidade de Brasília), UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) e UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Segundo levantamento, ao menos mais 14 universidades montaram comissões com a mesma finalidade, mas ainda não concluíram o trabalho. Na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), por exemplo, o relatório final está sendo elaborado.
Essas comissões universitárias começaram a aparecer após os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2002 para investigar e esclarecer violações de direitos humanos praticadas pelo Estado entre 1946 e 1988. A pesquisa da comissão nacional mostrou, entre outras coisas, que cooperações entre a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) e o Ministério da Educação levaram a uma reforma da estrutura do ensino público superior, aprovada pela lei 5.540/68, sancionada pelo ex-presidente Costa e Silva semanas antes do AI-5.
Segundo os pesquisadores da UFSC, a universidade era considerada pelos militares referência na aplicação dessa reforma. O fundador da universidade, João David Ferreira Lima, que foi reitor de 1960 a 1972, atuou na formulação do projeto.
“Um dos grandes motivos pelos quais a UFSC passou a ser considerada pelo regime militar como referência na implantação da Reforma de 1968 foi o fato de Lima ser visto como grande autoridade em gestão universitária, além de ter sido conivente e ativo com a implantação dos decretos presidenciais e ações de investigação e repressão da ditadura militar”, diz Victor Cunha, um dos estudantes bolsistas membros da comissão da UFSC.
“A história recente da UFSC nos mostrou, em duas oportunidades, que o arbítrio, a truculência, a violência e o desrespeito ao ser humano continuam presentes no país, a despeito inclusive da lei que, no caso da universidade, garante a autonomia universitária”, diz o texto.Os pesquisadores colheram 21 depoimentos e realizaram três audiências públicas, além de pesquisar centenas de documentos ao longo de mais de três anos.