Quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Por Redação O Sul | 14 de novembro de 2015
Então elas resolveram contar seus mais íntimos e dolorosos segredos. Meninas e mulheres lotam as redes sociais com relatos de assédios e abusos que sofreram nos ônibus, nas ruas e em casa. Em menos de dez dias, a hastag #primeiroassedio teve 82 mil citações no Twitter e no Facebook. Não são textos fáceis de ler.
Cada palavra carrega a memória de uma humilhação que ficou engasgada no passado. Ao escrever sobre a violência experimentada, as autoras tentam aliviar o sofrimento, compartilhando experiências e “acordando” os leitores para o tema.
Muitos dos relatos estão em uma página virtual criada por uma jovem de apenas 17 anos, que dos 11 aos 13 foi abusada pelo homem que jurava lhe proteger. “Ele é meu padrasto. Moro até hoje com ele. É horrível. Tenho nojo dele”, conta a adolescente que sonha em ser médica. Ela vibrou quando abriu a prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e viu que o tema da redação tratava de algo que ela conhece na pele – a violência contra a mulher.
“Meu padrasto não me bate, mas o que ele fez comigo é bem pior”, compara a menina, sem ódio na voz, mas com coragem para recordar a brutalidade que experimentou antes mesmo de ficar moça. “A primeira vez, ele me abusou enquanto eu dormia entre ele e minha mãe. Ela não acordou. Eu fiquei calada e com muito medo”, lembra a menina, que sofreu crises depressivas e jamais conseguiu apoio materno. “Amo minha mãe. Eu contei, e ela não acreditou. Nunca fui à polícia para não estragar minha família. Minha mãe gosta muito dele”, recorda.
Estatística dramática.
O drama da menina está nos extremos de uma estatística dramática. Pesquisa feita com 2.224 mulheres, com idade entre 14 e 24 anos, moradoras de 370 cidades brasileiras, revela que 94% já foram assediadas verbalmente, e 77% sofreram assédio físico.
Mais assombroso do que o percentual é a idade média das vítimas: nove anos, segundos dados da ONG ÉNóis Inteligência Jovem e do Instituto Patrícia Galvão, responsáveis pelo estudo. Na prática, significa que quase toda brasileira, ao menos uma vez na vida, já foi agredida com frases grosseiras e atos que variam desde encoxadas no transporte público até passadas de mão no meio da rua.
“Estamos aprendendo a reagir, a nos empoderar e a gritar ‘tarado’ cada vez que uma coisa dessas acontece. Nossa geração não quer mais considerar natural aquilo que a mulher não consente”, ensina a universitária Júlia Rezende Túribio Dantas, 21, antes de partir para mais um protesto contra o machismo.
Herdeiras de Simone de Beauvoir.
Milhares de brasileiras que participam da campanha do #primeiroassedio promovem um renascimento do movimento feminista. Elas já não precisam lutar pelo direito ao voto, à minissaia, ao trabalho. Nem queimam sutiãs na praça como fizeram, nos anos 1960, as contemporâneas da matriarca das feministas, a filósofa francesa Simone de Beauvoir.
“Essa explosão de meninas feministas é uma ótima notícia”, comemora a cientista social Lia Zanotta, uma das mais respeitadas estudiosas do País sobre os movimentos de mulheres. “As feministas do século 21 agem de maneira diferente. Sua base é a experiência pessoal. Elas rejeitam qualquer ato sem consentimento e não admitem o velho argumento que culpa as próprias mulheres pelas agressões sofridas”, completa a antropóloga.
O combustível da nova onda feminista é a experiência pessoal compartilhada em redes sociais, mas, como suas antepassadas, elas também vão às ruas. “Há uma onda de conservadorismo na política e as mulheres estão reagindo com bravura”, diz a psicanalista Claudia Gindre, 47. “As meninas estão nos ensinando que não ficar calada é o melhor remédio para combater a violência”. (AD)