Sábado, 03 de maio de 2025
Por Redação O Sul | 2 de maio de 2025
Tudo aquilo que fez os Estados Unidos grandes pode ser resumido numa fórmula: democracia liberal. Sempre que o país se desviou do respeito à divisão dos Poderes, às liberdades civis, ao livre comércio e à ordem internacional baseada em regras, apequenou-se. Nunca o risco de ruptura desses fundamentos foi tão grande como nos cem primeiros dias do segundo mandato do bagunceiro Donald Trump.
Internamente, seu populismo iliberal se manifesta na concentração desmedida dos poderes do Executivo. Reprimindo contrapesos e governando por decretos, Trump desafia a autoridade do Congresso e do Judiciário, mina instituições independentes e desmantela freios internos do próprio Executivo. A vingança contra instituições consideradas adversárias, como universidades ou ONGs, é indisfarçável. Trump já não se contenta em desmoralizar o establishment, quer tomar seu lugar.
No plano internacional, ele substituiu a diplomacia pela chantagem comercial e a ameaça militar velada. Sua “nova ordem mundial” é uma tentativa de girar o relógio da História rumo ao velho mundo das potências imperiais. Trump crê que um mundo regido pelo poder bruto, pela soberania absoluta e pelo unilateralismo – ao invés da democracia, dos direitos humanos e das alianças multilaterais – lhe dá melhores condições de fazer “negócios”. O outrora autoproclamado “líder do mundo livre” se transformou num Estado desonesto, imprevisível e predatório.
Os riscos são maiores do que em 2017: Trump não pode mais se reeleger e age mais por instinto e ideologia do que por cálculos eleitorais; afastou quadros republicanos moderados, cercando-se de militantes; e o contexto internacional está muito mais instável. Sua hubris autodestrutiva não é estranha à História: potências como a China sob Mao ou a URSS sob Stalin se debilitaram pelas políticas desastrosas de líderes inflexíveis com poder excessivo e visões ideológicas totalizantes.
Não cabe pessimismo, contudo. Primeiro, porque a estratégia trumpista tem limites. Visto como revolucionário por seus correligionários e como tirano por seus adversários, Trump é, antes de tudo, um narcisista indisciplinado e temperamental. Brigas internas e negociações improvisadas revelam um padrão: proclamações grandiloquentes seguidas de recuos humilhantes. A teoria do “líder louco” – intimidar inimigos com reações imprevisíveis – é insustentável quando aplicada a aliados. A reafirmação do peso geopolítico dos Estados Unidos sem coordenação com a Europa ou parceiros asiáticos cria vácuos que China e Rússia exploram. Domesticamente, a tática de governar com dramas e polêmicas multiplica sinais de exaustão e medo mesmo entre apoiadores.
Reserva moral
De resto, os Estados Unidos não são a URSS ou a China, muito menos a Venezuela ou a Hungria. Sua cultura democrática lhes dá reservas morais de outra ordem para reafirmar os valores constitucionais de liberdade de expressão, independência judicial e profissionalismo da burocracia pública. Setores da sociedade já reagem com ações na Justiça, mas precisam suplantar iniciativas isoladas com uma coordenação cívica. Sobretudo, não devem confundir a defesa das instituições com a defesa do status quo pré-Trump. Restaurar a confiança exige humildade e autocrítica para propor reformas que enfrentem as desigualdades e os ressentimentos que abastecem o movimento Maga.
A reação internacional tampouco deve ser “contra” os Estados Unidos, mas a favor da ordem liberal: europeus, asiáticos e latino-americanos precisam reforçar sua integração econômica, tecnológica e de defesa, através de acordos de livre comércio, parcerias de inovação e capacidades multilaterais de dissuasão militar.
Democracias não sucumbem apenas a golpes de força, mas podem ser lentamente corroídas pela apatia e a normalização do abuso de poder. Eventuais recuos de Trump sob a pressão dos mercados não significam que seus impulsos autoritários serão erradicados – podem até ser intensificados. Mais do que indignação ocasional, resistir a eles exige coordenação, perseverança e a coragem de defender os princípios que tornaram grandes não só a América, mas todo o mundo democrático liberal. Opinião/O Estado de S. Paulo