Sábado, 11 de outubro de 2025
Por Redação O Sul | 10 de outubro de 2025
“Esse é o meu favorito. Desculpe o cheiro. É formaldeído.” A cientista britânica Alexandra Morton-Hayward segura um de seus objetos mais valiosos. É um cérebro que ela apelidou de Rusty, ou “enferrujado”. O órgão encolhido e avermelhado parece pequeno, aninhado nas luvas da pesquisadora.
Morton Hayward é antropóloga forense e pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde cuida de espécimes extraordinários guardados em duas geladeiras.
A cientista reuniu uma coleção de mais de 600 cérebros antigos de todo o mundo, alguns com até 12 mil anos.
“Não conheço uma coleção do tipo que seja maior”, diz ela. Os cérebros normalmente se decompõem rapidamente após a morte.
Como é possível, então, que cérebros que não sucumbiram a esse processo degenerativo tenham sido encontrados em sítios arqueológicos?
Esse é um mistério que intriga os cientistas —e que Morton-Hayward está tentando desvendar.
A resposta, ela afirma, pode ajudar a estudar doenças neurodegenerativas como o Alzheimer ou o Parkinson.
Mas a primeira vez que Morton-Hayward viu um cérebro humano não foi em um laboratório.
Ela trabalhava em uma funerária e havia interrompido os estudos por causa de uma condição dolorosa que continua a atormentar sua vida —e tem origem no próprio cérebro dela.
Morton-Hayward estudava Arqueologia na Universidade de St. Andrews, na Escócia, quando começou a sentir dores de cabeça excruciantes.
“Lembro-me de chorar muito, não só de dor, mas também de confusão. Não conseguia entender por que isso acontecia comigo e por que arruinava minha vida”, lembra ela.
Ela teve que abandonar a universidade, voltar a morar com os pais e procurar uma série de empregos, incluindo uma vaga em uma funerária.
Os médicos, que por anos não conseguiram encontrar a causa de sua condição, finalmente a diagnosticaram com uma enfermidade chamada cefaleia em salvas, um tipo de dor de cabeça caracterizada por episódios intensos, que geralmente duram entre 30 e 60 minutos.
“De acordo com um estudo de 2020, a cefaleia em salvas é a condição mais dolorosa conhecida pela humanidade: ela foi classificada com uma nota 9,7 em uma escala de dor que vai de 0 a 10. Para contextualizar, dar à luz vem em segundo lugar, com 7,2”, comparou a cientista.
“É difícil imaginar dar à luz três vezes por noite e acordar para trabalhar no dia seguinte. Mas, para mim, isso é normal.”
Apesar da saúde frágil, Morton-Hayward matriculou-se em aulas online a partir de 2015 para concluir a universidade.
Ela se formou com honras e, em 2018, enquanto ainda trabalhava à noite na funerária, iniciou um mestrado em bioarqueologia e antropologia forense na Universidade College London, também no Reino Unido.
Foi durante a pós-graduação que ela se deparou com uma raridade que mudaria o curso da vida dela.
Anos antes, cérebros perfeitamente preservados haviam sido encontrados em sítios arqueológicos.
Em 1994, por exemplo, a arqueóloga Sonia O’Connor examinou restos mortais escavados em Hull, na Inglaterra, onde cerca de 250 sepulturas foram exumadas de um mosteiro medieval.
Nada preparou os arqueólogos para o momento em que um crânio se abriu, para revelar uma massa marrom com dobras superficiais.
Era o cérebro de alguém que havia sido enterrado há mais de 400 anos.
Após a morte, enzimas cerebrais começam a consumir as células de dentro para fora, num processo chamado autólise.
Em poucos dias, as membranas celulares se rompem e o cérebro se liquefaz.
Morton Hayward se lembra da primeira vez que viu um cérebro nessa condição, quando trabalhava na funerária.
Uma autópsia havia sido realizada no corpo de um indivíduo. Um saco plástico com os órgãos examinados foi enviado para a funerária junto com os restos mortais.
“Lembro-me claramente da minha surpresa ao ver o cérebro desintegrado”, contou a pesquisadora.
Os cientistas ainda não sabem ao certo por que alguns cérebros podem durar centenas ou até milhares de anos.
Morton-Hayward, no entanto, tem uma hipótese: os mesmos processos moleculares que danificam nossos cérebros em vida podem ajudar a preservá-los após a morte.
“Essencialmente, tudo começa com a quebra de gorduras, à medida que o cérebro se deteriora”, explica Morton-Hayward
“As gorduras contêm longas cadeias de átomos de carbono e, à medida que se decompõem, fragmentam-se e reagem com outras moléculas próximas, ligando-se a elas.”
“No cérebro, que é rico em gorduras e proteínas, esses fragmentos ‘reticulados’ agregam-se e aglomeram-se, o que, ironicamente, os torna mais resistentes a novas quebras.”
Esse processo de agregação de lipídios e proteínas durante a vida é acelerado na presença de íons metálicos, e o cérebro é rico neles, acrescenta a especialista.
Uma certa quantidade de ferro, por exemplo, é essencial para o funcionamento saudável do cérebro.
Mas o ferro acumula-se naturalmente no cérebro com a idade. E isso acontece numa taxa mais acelerada durante o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer, aponta Morton-Hayward.
O mesmo acúmulo de ferro que catalisa a agregação de proteínas e lipídios e os processos de envelhecimento e degeneração também torna o cérebro resistente à deterioração.
“Sabe-se que o acúmulo anormal de algumas proteínas contribui para o desenvolvimento de certas doenças neurodegenerativas, formando placas que interferem na função cerebral normal. Os milhares de cérebros antigos preservados no registro arqueológico apresentam semelhanças com esse tipo de patologia que podem até mesmo se formar por meio de alguns dos mesmos mecanismos”, observa a pesquisadora.
“Estudar cérebros antigos como o ponto extremo da trajetória de envelhecimento que vivenciamos ao longo da vida pode nos ajudar a compreender o desenvolvimento e a natureza progressiva da demência”, complementa ela. As informações são da BBC News.