Sexta-feira, 08 de agosto de 2025
Por Redação O Sul | 29 de junho de 2021
O cérebro que criou as séries televisivas Verano azul e Farmacia de guardia repousa em formol numa prateleira do bairro de Vallecas, na zona sul de Madri. O diretor Antonio Mercero passou os últimos anos de sua vida com Alzheimer, mas continuou encontrando seus velhos amigos. Um deles, o cineasta José Luis Garci, recordou numa entrevista que um dia Mercero lhes disse: “Acho divertido o que vocês estão falando, apesar de não saber quem vocês são. Mas sei que gosto muito de vocês”. O criador, depois de uma década com demência, faleceu em 2018, aos 82 anos, e doou seu cérebro à ciência. Queria que sua matéria cinzenta ajudasse a iluminar a chamada “grande epidemia silenciosa do século XXI”.
O patologista Alberto Rábano caminha entre cérebros com carinho e respeito, como se conhecesse cada um deles. Dirige o Banco de Tecidos da Fundação CIEN, com mais de mil órgãos doados à pesquisa das doenças neurológicas – incluído o de Antonio Mercero. O cientista reflete sobre um grande paradoxo: mais de um século após a descoberta do Alzheimer, não se conhecem suas causas e não existe nenhum tratamento. Nada. E, entretanto, a incidência está caindo rapidamente nos países ricos, a um ritmo de 16% por década desde 1988, talvez graças a fatores como a educação e a saúde cardiovascular, segundo um estudo da Universidade Harvard (EUA).
“Não sabemos a causa do Alzheimer e nunca saberemos, porque não há uma causa, há muitas”, afirma Rábano.
Até agora, os cientistas se centraram em dois grandes suspeitos. Nos cérebros das pessoas com Alzheimer, uma proteína chamada beta-amiloide acumula-se entre os neurônios. E uma segunda proteína, chamada tau, forma novelos dentro das células cerebrais. Ainda não está muito claro o papel dessas moléculas na enfermidade. Considerar que estas proteínas são as responsáveis pelo Alzheimer é como chegar à cena de um crime e acreditar que o sangue é o culpado pelo homicídio, nas palavras do neurologista David Pérez, do Hospital 12 de Outubro, em Madri.
A busca por um tratamento, entretanto, esteve centrada em limpar a beta-amiloide do cérebro. Todos os fármacos experimentais fracassaram até agora, mas as autoridades dos Estados Unidos decidiram em 7 de junho autorizar um novo, o aducanumab, fabricado pelo laboratório norte-americano Biogen e vendido a um preço superior a 240.000 reais por paciente por ano. É a primeira vez que se aprova um tratamento que ataca as supostas causas do Alzheimer: o aducanumab limpa a beta-amiloide, mas não ficou demonstrado que isto implique um benefício clínico para os pacientes. Ainda não se sabe se funciona.
Rábano se detém diante de prateleiras que rompem a monotonia do banco de cérebros. “Este é o de um leão marinho que fazia um show fantasiado de caubói no Zoológico de Madri”, conta, apontando um frasco. “Este é o de um rinoceronte branco. Tive que usar um machado para arrancar”, rememora, mostrando outro recipiente.
Os cérebros dos animais idosos que morrem no zoológico também acabam no arquivo de Rábano. Há leões, gnus, golfinhos, coalas, chimpanzés, girafas. O pesquisador mostra a imagem de um cérebro de tigre-siberiano cheio de proteína beta-amiloide.
“Em muitos mamíferos vemos mudanças como a do Alzheimer, mas não desenvolvem a doença”, explica.
O patologista acredita que os erros de diagnóstico são uma das razões históricas para o fracasso na busca por um tratamento.
“O Alzheimer nunca está sozinho. Temos que botar na cabeça que não basta diagnosticar o Alzheimer”, explica Rábano.
Há no mundo 50 milhões de pessoas com demência, 65% delas com Alzheimer, segundo a Organização Mundial da Saúde. Mas há outras formas de demência, que frequentemente aparecem misturadas: a vascular, a por corpos de Lewy, as taupatias, a encefalopatia LATE. Rábano convida os cidadãos a se tornarem doadores de cérebro, para ajudar na pesquisa. Alguns ensaios clínicos talvez tenham falhado porque fármacos contra o Alzheimer foram testados em pessoas que não tinham só essa doença.
A neurologista Raquel Sánchez Valle, do Hospital Clínic de Barcelona, se mostra otimista. “Mudamos de fase na pesquisa do Alzheimer”, opina.
Sua equipe participou do Engage, um ensaio clínico internacional com 1.650 pacientes para provar o polêmico aducanumab. Os resultados não foram conclusivos, mas a pesquisadora salienta que a eliminação da proteína beta-amiloide no cérebro de fato melhorou os indicadores associados à morte neuronal, embora não se chegasse a observar uma melhoria clara nos pacientes. “Precisamos de ensaios mais longos, de muito mais tempo”, explica.