Terça-feira, 30 de dezembro de 2025
Por Redação O Sul | 29 de dezembro de 2025
A cidade de Moggio Udinese tem cerca de 1.600 habitantes. Por ocupar um território de montanha, aos pés dos Alpes Julianos, que separam a Itália da Áustria, a maior parte das casas se concentra em poucas ruas. Duas delas são familiares, ao menos no papel, para mais de 80 brasileiros que tiveram a cidadania italiana reconhecida de 2018 a 2024.
Segundo investigação iniciada pela polícia e agora aos cuidados do Ministério Público, uma casa na Via Abbazia e outra na Via Traversigne foram indicadas de forma falsa como local de moradia de brasileiros que obtiveram a cidadania ali por direito de sangue. Os dois endereços ficam a cerca de 100 metros da prefeitura, responsável pelos processos.
Seis pessoas – quatro funcionários da administração municipal, um brasileiro e uma albanesa – foram indiciadas pelo suposto esquema. Uma notificação da Promotoria aos investigados, à qual a Folha teve acesso, diz que esse grupo “comprovava falsamente a existência”, nesses dois imóveis, de “situações de moradia habitual” para brasileiros descendentes de italianos. Com isso, garantia “o requisito legal necessário para a inscrição nos registros da população residente e, consequentemente, para o sucessivo pedido e obtenção do status de cidadão italiano iure sanguinis (direito de sangue)” para eles e seus filhos menores de idade.
No total, diz o documento, 83 brasileiros tiveram a cidadania reconhecida dessa forma, sem nunca terem residido de fato em Moggio Udinese. “Alguns até vieram (à cidade), mas poucos. Ficavam poucos dias, faziam turismo e iam embora”, disse à Folha o promotor Giorgio Milillo, de Udine, responsável pelo caso. A investigação aponta que os brasileiros que passaram pela cidade ficavam de dois a cinco dias, mas ainda é incerto quantos estiveram realmente lá.
No caso de Moggio Udinese, os beneficiados teriam forjado esse status de morador para poder dar seguimento ao processo. Segundo o Ministério Público, eles teriam pagado € 6.500 (R$ 41,3 mil) para conseguir a cidadania nesses moldes, incluindo o título de residência fictício. Não está claro como esse valor era calculado no caso de famílias numerosas ou com filhos. Esses brasileiros, porém, não são alvo da investigação.
O único brasileiro indiciado é Sergio Luiz Garana, 54, que seria residente na região do Vêneto, também no norte da Itália. Ele é apontado como proprietário de um dos imóveis utilizados como residência fictícia para seus compatriotas. Para os investigadores, Garana atuava com uma mulher de origem albanesa na organização do esquema.
A dupla, segundo a apuração, indicava à prefeitura as duas casas em Moggio Udinese como de moradia dos brasileiros, chamados nos autos de “clientes”. Depois, entregava em nome deles a documentação para obter a cidadania italiana, incluindo formulários com sinais de falsificação, e ajudava os clientes a organizar viagens breves para a Itália. Os dois mantinham relações “pessoais e constantes” com funcionários da prefeitura, ainda segundo a Promotoria.
Um indício de que as moradias na cidade eram simuladas, diz o Ministério Público, é que a documentação entregue à prefeitura continha “falsificações grosseiras” e “prazos incongruentes”. Foram identificados casos em que a emissão do código fiscal (equivalente ao CPF) ocorreu antes de os brasileiros chegarem à Itália, além de pedidos de cidadania sem data e com assinaturas “claramente falsificadas”.
Além disso, os policiais identificaram contratos de aluguel trimestrais com assinaturas de inquilinos falsificadas e com datas de assinatura e registro anteriores à suposta chegada dos brasileiros.
Na outra ponta do esquema, funcionários da prefeitura são suspeitos de forjar fiscalização da presença dos brasileiros nas duas casas apontadas como endereço de moradia. Um dos requisitos para a obtenção do certificado de residência é justamente a vistoria in loco de um agente. “Alguns (brasileiros) foram até checados, mas a grande maioria não”, diz o promotor Milillo.
Caso se tornem réus, os investigados responderão por crime de falsidade ideológica em documentos públicos. A pena é de um a seis anos de prisão, mas o agravante da reincidência pode triplicar a sanção. As informações são do jornal Folha de S.Paulo.