Terça-feira, 09 de setembro de 2025
Por Redação O Sul | 8 de setembro de 2025
Além da diversidade de espécies de microrganismos no solo, também há interesse nos rios, lagos e mangues.
Foto: CNPEM/DivulgaçãoReza a lenda que o açaí, pequeno fruto de tom roxo escuro que nasce de uma palmeira, surgiu para um povo indígena amazônico durante um período de fome, salvando-o da escassez. Hoje, o nome do fruto inspira o Centro Avançado de Pesquisa e Inovação Biotecnológica da Amazônia Oriental, que pretende abrir caminhos para a produção de medicamentos e também explorar aplicações em áreas como agricultura, transportes e cosméticos.
O projeto Iwasa’i — “açaí” em um dos troncos da língua tupi — reúne 17 instituições, em sua maioria da região amazônica, com apoio do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A iniciativa busca estruturar o laboratório-sede na Universidade Federal do Pará (UFPA) e ampliar o acesso de cientistas locais a equipamentos de ponta, como o acelerador de partículas Sirius, em Campinas.
“Assim como na lenda, o centro quer oferecer sustentabilidade tecnológica à região, utilizando processos que não destruam o meio ambiente”, explica Rafael Azevedo Baraúna, professor do Instituto de Ciências Biológicas da UFPA.
O foco local, contudo, tem alcance global. O centro pretende contribuir para desafios que preocupam especialistas em todo o mundo, como a resistência antimicrobiana e o crescimento de casos de câncer e outras doenças crônicas, em meio ao envelhecimento populacional.
Os pesquisadores colhem agora os resultados da primeira expedição do projeto, realizada em 2021 no Parque Estadual do Utinga, em Belém, que em breve será palco da Conferência da ONU sobre o Clima (COP-30). Em artigo na revista científica Microbiology Spectrum, da American Society for Microbiology, o grupo relatou que, a partir de poucas gramas de solo, identificou que 62% das moléculas produzidas por apenas três bactérias eram desconhecidas. Mais que isso: as análises apontam potencial antitumoral e antibiótico. O estudo também indica a descoberta de uma nova espécie de bactéria, cujo manuscrito está em preparação para publicação.
“Conseguimos mostrar o potencial inexplorado da Amazônia. Há muitas moléculas desconhecidas”, afirma Ana Carolina Favacho Miranda de Oliveira, pesquisadora pós-doutora do Laboratório de Engenharia Biológica da UFPA e autora principal do artigo.
“Não esperávamos encontrar uma espécie nova, muito menos logo na primeira expedição”, acrescenta Daniela Trivella, coordenadora de Descoberta de Fármacos do Laboratório Nacional de Biociências, do CNPEM.
Novas expedições já ocorreram em áreas como a Ilha de Marajó e a região de Santarém. Além do solo, a equipe pretende investigar rios, lagos e manguezais.
A busca por moléculas em microrganismos pode surpreender quem associa bactérias e fungos apenas a doenças. Mas, na natureza, eles produzem substâncias químicas para sobreviver em meio à competição. Essa “guerra química” pode se transformar em fonte de antibióticos, antifúngicos e até compostos com ação contra tumores.
Essas moléculas interferem em processos de crescimento, reprodução e morte celular — justamente os que ficam descontrolados no câncer. “A natureza é o melhor químico que existe”, resume Daniela. Dos cerca de 2 mil fármacos em uso no mundo, cerca de 68% têm origem natural, embora apenas uma pequena parte chegue ao consumo humano sem modificações.
Grande parte dessas descobertas vem de outros países, não por falta de potencial brasileiro, mas por ausência de investimentos consistentes. “Não conhecemos as moléculas da biodiversidade brasileira ainda”, aponta Daniela. Segundo ela, a biodiversidade microscópica da Amazônia segue sendo uma “matéria escura” científica.
O caminho até transformar uma molécula em medicamento, no entanto, é longo. O processo pode levar entre 10 e 20 anos, passando por testes em células, animais e humanos. Estima-se que, a cada 10 mil substâncias estudadas, apenas uma se torne fármaco. Essa dificuldade levou a indústria farmacêutica, nas últimas décadas, a reduzir investimentos em produtos naturais e priorizar a síntese artificial de moléculas em laboratório.
Ainda assim, os cientistas defendem que a natureza segue sendo fonte inesgotável de criatividade química — e a Amazônia, uma das fronteiras mais promissoras nessa caçada científica.
(Com informações do O Estado de S.Paulo)