Domingo, 08 de junho de 2025
Por Redação O Sul | 12 de agosto de 2016
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Eu era aluno do segundo ano do curso de Direito, na Faculdade Federal de Pelotas. Tinha 18 anos, quase 19. Nessa época, Pelotas não tinha CPOR (um curso do Exército reservado aos poucos universitários que, chegando à idade do serviço militar, nele se matriculavam e, ao terminá-lo, recebiam o título de oficiais da reserva).
No entanto, Pelotas não tendo o CPOR, o jovem que chegava por volta dos 18 anos de idade, alistava-se e, salvo alguma liberação por enfermidade ou “pistolagem”, ia “servir à Pátria” que era como se dizia em linguagem oficial – como mero soldado.
E foi o que me aconteceu. Levantar cedo. Pegar o ônibus, lotado de caras sonolentas. Vestir o uniforme de campanha, arma em punho para participar em um desfile diário, com apoio de marchas marciais executadas, com empenho, pela Banda do Regimento.
Dia após dia, repetia-se o programa, no qual se inseria um discurso do Comandante, sempre exigindo disciplina e, eventualmente, destacando o que parecia marcante no calendário militar, pegando-me de surpresa, já que, por exemplo, nunca me atirara em desconfiar que havia o “Dia da Cavalaria” e, muito menos, quando seria.
Além disso, se usava boa parte do tempo em limpar o alojamento, manusear o armamento (bem antigo), fazer exercícios físicos etc.
Sempre se falava nas famosas marchas com acampamentos de 2 ou 3 dias que, quando delas participei, sem ser nenhum herói, pareciam-me bem suportáveis.
Enquanto estudante de Direito que, praticamente, ficava impedido de frequentar o curso (salvo uma ou outra escapadinha de risco), o serviço militar me encurtava o tempo de exercitar a minha segunda vocação: aspirante ao jornalismo, formalizada ao escrever crônicas (duas por semana) no vespertino da cidade.
O ser soldado, além disso, exigia o cabelo com um corte cadete radical e a obrigação de usar a farda, coisas que atrapalhavam a ambicionada e discutível boa aparência do jovem universitário que, entre suas aspirações, tinha a pretensão de circular atraente perante as “moçoilas” de sua geração.
A vida, apesar de suas maiores emoções, fluía, pelo menos suportável, até que, em uma madrugada de abril fui despertado, em sobressalto, pelos meus tios, com quem morava (a família – e eu também, até vir estudar na universidade – vivia em Uruguaiana) que, pesarosos, noticiavam que um telefonema de meu irmão avisava que, vítima de um infarto, nosso pai falecera.
Viajei, imediatamente, para Uruguaiana abalado e incapacitado de poder medir – se é que se podia fazê-lo – o tamanho da perda de alguém que (não sei bem se era isso) além de eterno, como a figura referencial de minha vida. Até porque, nos seus 64 anos, nunca fizera exames (um check-up de hoje) para avaliar sua saúde. Só a eles se submetera, há 15 dias, recebendo resultados que asseguravam que estava pra lá de saudável. Em uma ironia que, na época, me desconsertava: ele morrera certo de que estava sadio.
Voltei pra Pelotas totalmente abalado. As coisas, antes até importantes, caíram na desvalia. As que eram apenas desagradáveis, viraram insuportáveis. Entre elas, as exigências e rigorismo disciplinares que me pareciam práticas inúteis. Cada dia, em um momento de tristeza imensa, enfrentava uma revolta interna, onde eu confrontava a perda do meu pai – e a amargura que ela me produzia – e como que culpava as obrigações da caserna como também responsáveis pelo triste desconsolo familiar.
Um certo dia, sem falar no episódio paterno, fiz uma crônica, apontando algumas falhas no regime militar, na ótica de um soldado; no meu juízo, amargurado e no limite de meu sentimento de inconformismo. Escrevi, entre outras coisas, que o Ministro de Guerra, General Teixeira Lott, só tinha medalhas por “bom comportamento” e que, pela sua ineficácia, era hora de, espontaneamente, prestar um serviço ao País: vestir o pijama de aposentadoria e ir pra casa.
Eu era soldado e ele, General e Ministro. Como o leitor presume, disputa parelha.
No dia em que a “Opinião Pública” divulgou a crônica, fui chamado ao Comando do Regimento e repreendido, num clima que, para mim, fazia lembrar (exagerado) o tribunal de Nuremberg, que ali estava quem cometera um crime gravíssimo (querendo aplicar a técnica do susto). Ao final da tarde, divulgava-se a condenação: 10 dias de cadeia, sendo os cinco primeiros na solitária. E cumpri a pena. Para uns, indisciplinado. Para outros, ousado.
Para ver como a Vida, as vezes, escreve certo por caminhos sinuosos, no ano seguinte havia eleição presidencial e o General Lott era candidato do governo. Pesado, inábil, tinha a máquina do poder na mão.
Eu, até porque tinha ainda viva a conta da minha condenação (além de outra punição: me obrigaram a permanecer como soldado por um mês a mais na tropa, do que os recrutas que comigo sentaram praça.
Por outro lado, passara a ser, na faculdade, dirigente de Grêmio Estudantil. Obviamente, apoiei na eleição nacional o candidato da oposição, Jânio Quadros.
Líderes políticos da época vieram me pedir autorização para republicar a crônica sobre Lott, o que autorizei imediatamente. E ela saiu mais três ou quatro vezes, deixando de ser um crime militar para, pelo giro da força do passar do tempo e das circunstâncias, para virar um trunfo legal e eleitoral da vida civil.
Por tudo isso – e enquanto o tempo e a vida passam – é que fico sempre tentado a dar razão a Disraeli quando dizia: “O homem não é produto das circunstâncias. As circunstâncias é que são produtos do homem”.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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