Sábado, 04 de maio de 2024
Por Redação O Sul | 29 de abril de 2018
Quando Miriam descobriu que estava grávida, em 2007, três coisas lhe aconteceram: o marido a abandonou, ela perdeu o emprego em La Paz e, por fim, um irmão que morava no Brasil convidou-a para trabalhar na oficina de costura que tinha no bairro do Belenzinho, em São Paulo. Pedagoga, Miriam era educadora popular na Bolívia e nunca pegara numa agulha, mas veio. “Eu tinha sonhos, queria fazer grandes coisas neste novo país”, diz, com um sorriso tímido.
O trabalho na oficina da família começava às 7h da manhã e, frequentemente, seguia até o início da madrugada. Sem falar português, Miriam tinha medo de ir ao médico e ser maltratada. Depois que o filho nasceu, um desentendimento com o irmão a fez deixar a oficina e lançar-se num périplo em busca de novos empregos.
Foi difícil, ela conta, porque muitas oficinas não aceitavam crianças. Miriam deixava o filho trancado num quarto nos fundos do trabalho. Era preciso deixá-lo longe dos olhos do chefe. Sem amigos ou família, desesperou-se. Uma tarde, enquanto o menino chorava e o patrão reclamava, bateu na criança. Hoje, quando se lembra daquela época, acha que sofria com depressão pós-parto. Até ocorreu-lhe procurar ajuda na ocasião, mas ela não sabia nem onde fazer isso.
Uma pesquisa recente, feita por equipe da Universidade Federal de São Paulo, sugere que transtornos como o de Miriam — que prefere não dizer seu nome completo — são comuns entre imigrantes bolivianos que vivem na cidade. É um grupo de cerca de 100 mil pessoas, cujos problemas psicológicos escapam ao radar do poder público:
“Há muitas pesquisas sobre trabalho análogo à escravidão, um problema sério”, diz Lineth Bustamante, uma das autoras do trabalho, ainda não publicado. Lineth e seus colegas entrevistaram 104 imigrantes bolivianos que viviam em São Paulo há pelo menos 30 dias.
Mais de metade da amostra (52%) apresentou alta propensão para desenvolvimento de transtornos psiquiátricos não psicóticos — males como depressão e ansiedade. O problema, os pesquisadores constataram, era maior entre as mulheres. E a gravidade dos sintomas aumentava conforme crescia a dificuldade relatada pela pessoa para receber ajuda especializada. Os principais problemas apontados diziam respeito a barreiras linguísticas e ao desconhecimento de que esses serviços estão disponíveis.
Outro trabalho de Lineth, recentemente publicado, fez uma revisão de estudos internacionais e concluiu que 47% das pessoas que migram ou buscam refúgio em todo o mundo sofrem com transtorno de estresse pós-traumático. Normalmente, a prevalência desse problema na população é de 3%.
Lineth fala do tema com propriedade. Ela própria boliviana, a psicóloga veio de La Paz para São Paulo com o marido e as duas filhas em 2007, tentando escapar do desemprego no país natal. A ideia, originalmente, era montar uma oficina de reformas de roupa, mas o trabalho era insuportável.
Sua trajetória mudou quando conseguiu um emprego como babá na casa da professora Elisa Brietzke, da Unifesp. Elisa a estimulou a retomar os estudos e, juntas, começaram um projeto sobre saúde mental dos imigrantes.
O assunto é tema de estudos internacionais há algumas décadas. Com o tempo, ganhou fôlego a hipótese de que o processo de migração e refúgio é potencialmente traumático:
“Os imigrantes e refugiados passam por uma série de dificuldades. Alguns enfrentam situações de violência e perda, em seus países de origem e também nos de destino”, diz a professora Miriam Debieux, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.