Sábado, 11 de outubro de 2025
Por Redação O Sul | 1 de dezembro de 2015
Depois dos atentados em Paris (França), os meios de comunicação ocidentais trataram de divulgar, com tons variados de sensacionalismo, a informação de que o Estado Islâmico estaria usando uma misteriosa droga, chamada Captagon, como recurso químico para dar coragem a seus soldados e terroristas. De maneira geral, os textos apontavam para o perigo do uso dessa substância que tira a fome e o sono, e prevê energia aos militantes, os atuais inimigos do mundo como ele é.
Vale a pena dissecar o que é fato e o que é pânico descabido nessa história. O Captagon foi sintetizado na Alemanha, na década de 1960, com o nome científico de fenetilina. Durante alguns anos ela foi um tratamento alternativo para crianças com hiperatividade.
No entanto, ele caiu no gosto do Oriente Médio, especialmente na Península Arábica. Quantidades consideráveis da produção oficial de fenetilina eram desviadas para uso recreativo. O abuso da droga, que também era relativamente pequeno, levou a sua proibição nos anos 1980, em um esforço típico do auge da Guerra às Drogas. Depois de 1986, não houve mais produção legal de Captagon no mundo.
No entanto, como é comum quando se fala de substâncias psicoativas, a proibição tornou a produção e distribuição de Captagon um negócio lucrativo. O consumo das pílulas não se reduziu à Península Arábica, era alimentado por um circuito que envolvia a produção na Europa, o trânsito das pílulas pela Turquia e a busca pelo estimulante principalmente nos países árabes.
A Síria entrou neste cenário recentemente. O país era um dos grandes polos de produção farmacêutica do Oriente Médio antes do esfacelamento econômico causado pelo levante contra o governo de Bashar al-Assad. Aparentemente, parte de seu parque industrial se voltou para a produção de uma droga aceita entre os árabes e que serve também para guerrear – o Captagon.
Aí, era só questão de tempo até que alguém percebesse que isso era notícia, transformando uma substância psicoativa de uso incomum entre ocidentais em uma “nova droga super-perigosa” de fanáticos islâmicos.
A íntima relação entre estimulantes e as guerras tem uma rica história. Na Segunda Guerra Mundial, nazistas e aliados contaram com o apoio de anfetaminas para manter soldados alertas e com pouca fome. Já o Japão teve de lidar com uma considerável população de dependentes de anfetaminas depois da guerra, pois – além dos soldados – os trabalhadores eram incentivados a usá-las para aumentar a produtividade em tempos difíceis.
Outra história que se repete aqui, no caso da fenetilina, é se associar o uso de uma droga estranha e ameaçadora a um grupo social indesejável. Esse mecanismo de fomento ao pânico moral já foi usado inúmeras vezes, quando se conectou o uso de maconha aos indesejáveis mexicanos, nos EUA, e aos negros, no Brasil; o ópio, aos imigrantes chineses; a cocaína, aos negros americanos; os alucinógenos, aos hippies. Em todos esses casos as descrições dos efeitos das substâncias foram bizarramente distorcidas. Nos EUA, na primeira metade do século 20, por exemplo, foi atribuída à cocaína a capacidade de prover a homens negros imunidade a disparos de armas de fogo.
Não é novidade nenhuma, portanto, para uma sociedade anestesiada pela ideia de que as drogas são um mal em si e que a melhor forma de combater esse mal é de forma militar, que uma substância obscura do Oriente Médio supostamente torne terroristas “super-humanos” e seja uma “perigosa superanfetamina”. Não se trata, aqui, de minimizar o impacto do abuso do Captagon, que precisa ser abordado de forma lúcida. No entanto, se a droga ainda fosse legalizada e distribuída de forma controlada, é certo de que a fenetilina não seria fonte de lucro para o Estado Islâmico como ela se transformou. Aliás, a relação íntima entre as guerrilhas peruanas e colombianas com a produção de cocaína e o considerável aumento na produção de ópio e de heroína no Afeganistão, após a invasão americana, demonstram que o casamento da Guerra às Drogas com a Guerra ao Terror não é exclusividade do Captagon.
A discussão sobre a “droga do terror” é certamente marginal diante do problema muito maior e mais complexo do relacionamento entre Islã e Ocidente. Ainda assim, cabe a todos nós, que queremos que sejam reduzidos os danos causados pelas drogas e desejamos um mundo sem terror, perguntar a quem atendem manchetes distorcidas, que nos levam à ojeriza automática a todo e qualquer grupo ou fenômeno social que pareça obscuro ou ameaçador. Os preconceitos estão entre as raízes da proibição das drogas, que matam mais pessoas do que as drogas em si, e da xenofobia, que, sabidamente, reforça o recrutamento de novos militantes islâmicos. Seria então possível conceber que o questionamento dos preconceitos e de suas guerras poderia, um dia, tonar o mundo um lugar mais seguro? (Luís Fernando Tófoli/AE)