Sábado, 01 de novembro de 2025
Por Redação O Sul | 17 de julho de 2021
O primeiro semestre da campanha no Brasil foi marcado por denúncias de corrupção e atrasos constantes no cronograma.
Foto: EBCCompletam-se neste sábado (17) exatos seis meses desde que a enfermeira Mônica Calazans recebeu uma injeção de Coronavac, em São Paulo, dando início à campanha de imunização contra a Covid-19 no Brasil. Desde então, 32,8 milhões de pessoas foram imunizadas no País – com duas doses ou com a vacina de dose única: o montante corresponde a 20,6% da população adulta nacional.
Especialistas avaliam que a proporção é insatisfatória em um País cuja infraestrutura de saúde permitiria, a essa altura, ter imunizado toda a população. O custo do atraso, segundo eles, foram as mais de 300 mil mortes por coronavírus que aconteceram nos últimos seis meses e poderiam ter sido evitadas.
“O Brasil perdeu a chance de servir de exemplo e ser uma referência na vacinação contra a Covid-19”, diz Raquel Stucchi, infectologista da Unicamp (Universidade de Campinas) e consultora da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia). “Nós temos há 40 anos o melhor programa público de vacinação do mundo e temos um histórico de campanhas públicas de muito êxito, mesmo considerando a dimensão do nosso país e as dificuldades geográficas. O esperado era que mais uma vez o Brasil se colocasse como exemplo de vacinação rápida e ágil.”
Neste mesmo período, a título de exemplo, Israel imunizou 60% de sua população; o vizinho Uruguai, 59%; o Reino Unido, 52,36%; e os Estados Unidos, 47,96%.
O primeiro semestre da campanha no Brasil foi marcado por denúncias de corrupção, atrasos constantes do cronograma e declarações polêmicas de autoridades que por vezes colocaram as vacinas em descrédito. Houve também mudanças de orientação sobre intervalo entre as doses, falhas em bancos de dados, deslocamentos populacionais em busca de imunizantes, disseminação de notícias falsas, falta de comunicação por parte do governo e o surgimento de novos personagens sociais, como os fiscais de comorbidade e os”sommeliers de vacina”. E a base de todos os problemas na campanha: a escassez dos imunizantes.
O Ministério da Saúde argumenta que a demora na obtenção de vacinas foi consequência da alta demanda mundial, e que as expectativas são grandes para que, no segundo semestre, o ritmo acelere o suficiente para vacinar toda a população maior de idade no País.
Avança em alguns Estados e municípios o calendário para aplicar as primeiras doses, que foram priorizadas pelo PNO (Plano Nacional de Operacionalização contra Covid-19), documento produzido pela coordenação-geral do PNI (Programa Nacional de Imunizações) como medida adicional de resposta ao enfrentamento da doença. Até sexta (16), 87,3 milhões de brasileiros haviam recebido ao menos uma dose, o que corresponde a 55% da população adulta.
Neste sábado (17), quando se completam os seis meses da campanha, São Paulo aplica a primeira dose em pessoas entre 35 e 37 anos. O Rio começa a imunizar a faixa dos 37. Todos os cronogramas são feitos com base na expectativa de remessas de imunizantes e já sofreram diversas alterações devido ao não cumprimento de entregas e o consequente desabastecimento dos postos.
Enquanto isso, os números da pandemia começam a cair pela primeira vez desde janeiro, mas seguem assustadores: na sexta-feira (16), foram mais de 45 mil casos confirmados e 1.456 mortes, segundo dados do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde). A média móvel de mortes, um balanço dos últimos sete dias, vem apresentando queda desde meados de junho, mas permanece elevada, acima de mil.
Especialistas reforçam ainda que, apesar do avanço da vacinação, é necessário manter as demais medidas de proteção contra o coronavírus, como o uso de máscaras, a higienização e as políticas de isolamento social.
Faltou vacina
O PNI (Programa Nacional de Imunização) brasileiro conta com 36 mil salas de vacinas espalhadas pelo Brasil, que servem tanto para aplicar imunizantes de rotina como para campanhas específicas, como é o caso da gripe todos os anos e da Covid-19, em 2021. O PNI é anterior à existência do SUS (Sistema Único de Saúde), que possibilitou sua expansão, e foi responsável pela erradicação de doenças como a varíola.
Hoje, por meio do PNI, o Brasil consegue ofertar a sua imensa população acesso gratuito às vacinas recomendadas pelos organismos internacionais de saúde. Na prática, isso significa que, antes mesmo de a pandemia começar, o País já dispunha da infraestrutura necessária para iniciar uma campanha emergencial desse porte.
“Esse era um dado muito positivo para o Brasil, pois para imunizar a população contra o coronavírus não era necessário construir uma infraestrutura do zero. Saímos à frente nesse sentido”, diz José Cássio de Moraes, professor da Santa Casa de São Paulo e integrante do Observatório Covid-19, iniciativa independente que reúne pesquisadores para disseminar informações sobre a doença com base em dados.
Segundo Moraes, no entanto, a capacidade do sistema brasileiro não foi usada. “Essas 36 mil salas poderiam estar aplicando no mínimo dois milhões de doses por dia, como já foi feito anteriormente. Isso dá 10 milhões de doses por semana, 40 milhões por mês. Em seis meses, poderíamos ter toda a população adulta vacinada”, calcula o professor.
No final de fevereiro, primeiro mês completo de campanha, o Brasil aplicou em média 40,7 mil primeiras doses por dia, segundo dados do Vacinômetro, plataforma que projeta o tempo necessário para vacinar a população adulta brasileira com base na média móvel de primeiras doses aplicadas nos últimos sete dias. No dia 15 de julho, essa média estava em 727 mil, um avanço considerável, porém ainda bastante aquém da capacidade do sistema.
Seguindo esse ritmo, a iniciativa calcula que levaria até o dia 11 de novembro para que 90% da população adulta do Brasil receba pelo menos uma dose. O vacinômetro é uma iniciativa independente feita pelo desenvolvedor Bernardo Loureiro.
Um levantamento feito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em parceria com a USP (Universidade de São Paulo) revela que o Brasil precisa aplicar mais 207 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 para atingir a imunização completa de toda a população. Isso exigiria a aplicação de mais de um milhão de doses diárias até 31 de dezembro.
O motivo para o baixo desempenho é, essencialmente, a falta de imunizantes no País.
“No começo da campanha tínhamos um cenário mais incerto em relação ao cumprimento do cronograma, tivemos dificuldade em avançar. Hoje observamos um cenário mais claro, com maior regularidade”, diz Rodrigo Otávio da Cruz, secretário executivo do Ministério da Saúde. Cruz assumiu o posto em março no lugar do coronel Élcio Franco, que meses depois tornou-se centro das investigações sobre pagamento de propina na compra de vacinas.
Segundo ele, a disponibilidade de vacinas no Brasil dependia da demanda mundial. Conforme países fabricantes, como Estados Unidos, Israel e China, avançaram suas respectivas campanhas, houve maior disponibilidade para a compra e venda em outras regiões. “O mundo inteiro ainda clama por vacina, não tem nenhum país com a população inteira imunizada, mas conforme eles vão avançando, temos maior previsibilidade do recebimento de insumos e imunizantes”, diz.
Já especialistas apontam lentidão e incompetência do governo para negociar a compra de doses desde o ano passado, quando fabricantes começaram a fazer ofertas, enquanto ainda aguardavam aprovação dos imunizantes. Nos últimos meses, surgiram indícios de que o governo negligenciou essas negociações – a hipótese é um dos principais pontos de investigação da CPI da Covid.
“A falta de vacinas decorre do retardo das negociações com várias empresas, o que tem sido cada vez mais evidenciado. Outros países adiantaram os recursos para garantir o produto, o que não aconteceu aqui”, critica Moraes, do Observatório Covid-19.
Falta de comunicação e disseminação de fake news
Outra crítica feita à campanha é a de que não houve, por parte do governo, um esforço massivo para comunicar a população sobre a importância da vacina, a sua disponibilidade e a necessidade de retorno para a segunda dose. A ausência de uma estratégia nesse sentido favoreceu a proliferação de notícias falsas sobre as origens dos imunizantes e seus efeitos.
Uma consequência prática de falha na comunicação foi o baixo comparecimento em postos abertos aos sábados, por exemplo. “As pessoas não foram vacinar porque ficaram dormindo em casa? Não, mas porque não sabem que o posto vai estar aberto. Na periferia, o acesso à informação é ainda menor, é preciso passar com um carro de som dizendo literalmente ‘o carro da vacina chegou”’, diz Moraes, em uma referência ao vídeo que viralizou ironizando a ausência de ações do governo.
Outro efeito foi o surgimento do que se convencionou chamar “sommeliers de vacina”. O termo se refere a indivíduos que se recusam a tomar o imunizante de determinados fabricantes ou que percorrem postos em busca da vacina de sua preferência. O que é defendido pelos adeptos como direito à livre escolha pode ter consequências preocupantes na logística da campanha.
“Todas as vacinas aplicadas no Brasil têm uma eficácia semelhante para diminuir os casos graves, internações e óbitos. Isso precisa ser exaustivamente divulgado para que a população se sinta confiante em relação ao fato de que tanto faz a vacina que vai tomar”, diz Stucchi.
O secretário executivo do Ministério da Saúde reconhece que há o que se aprimorar na comunicação do governo em relação à vacinação. Segundo ele, tem sido reforçado com ministros de Estado o discurso pró-vacina.
“Estamos com uma campanha de publicidade com a família do Zé Gotinha, porque achamos interessante trazer a mensagem da família para incentivar que todos se imunizem. Recentemente lançamos também uma campanha para a segunda dose, e sempre que o ministro fala pedimos para ele reforçar em seu discurso a necessidade e incentivo para que todos os brasileiros, caso tenha chegado a época, se imunizem.”
As expectativas para o segundo semestre
Existe hoje a previsão de recebimento de mais de 400 milhões de vacinas nos próximos meses, de quatro laboratórios diferentes. Cruz afirma que o Ministério da Saúde mantém reuniões semanais com todos os fabricantes, nas quais é discutida a possibilidade de se antecipar as entregas.
A expectativa é que o mês de julho bata o recorde de doses aplicadas, ultrapassando as 40 milhões –até agora, foram aplicadas 20 milhões. O secretário diz que, em agosto e setembro, o patamar pode chegar a 60 milhões – valor que chega ao limite normal da capacidade do PNI, considerando a aplicação de doses também aos sábados. “Vamos testar a capacidade do sistema de forma diária. Não podemos cravar que todas as doses serão entregues, mas temos boas esperanças de que os números vão se concretizar”, diz Cruz. Segundo calcula, será necessário cerca de 130 dias para terminar de imunizar a população adulta.
O próximo passo, dizem os especialistas, é pensar na vacinação de adolescentes. Além disso, será necessário avaliar a necessidade de aplicar uma terceira dose na população, ou segunda, para o caso da Janssen. Seguir os protocolos de prevenção e reforçar a comunicação com a população é essencial.
“Vacinar é um ato social. Você está se protegendo e protegendo pessoas que te cercam. É a forma como pessoas que não podem tomar a vacina, seja porque não chegou a vez ou por uma questão de saúde, se beneficiam também”, conclui Moraes.