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Suíça desenvolve computador de neurônios: cientistas criaram sistema que usa células humanas para processar dados de inteligência artificial com mais eficiência energética

Jordan e Kutter exibem numa tela de um computador o sistema que criaram: elementos orgânicos em vez de cérebro eletrônico. (Foto: Divulgação)

A ideia de usar neurônios reais para criar um “computador orgânico” é comum na ficção científica, mas começa a ganhar contornos mais concretos em laboratórios. Uma empresa suíça, a FinalSpark, afirma ter registrado avanços importantes na tentativa de transformar células cultivadas em bioprocessadores e sustenta que já possui resultados suficientes para seguir desenvolvendo a tecnologia.

Quando o cientista Fred Jordan iniciou seus estudos em inteligência artificial, seu foco não eram células humanas, mas chips de silício. Ele trabalhava na simulação de redes neurais inspiradas no cérebro humano, recurso básico de sistemas como o ChatGPT. A expectativa era aperfeiçoar processadores e algoritmos capazes de reproduzir com mais precisão o fluxo de informações de um sistema biológico. Jordan e seu sócio, Martin Kutter, fundaram a FinalSpark com essa missão, mas logo encontraram uma barreira: os neurônios virtuais consumiam energia em excesso e tornavam inviável a construção de um “cérebro artificial” metalizado.

Enquanto grandes empresas conseguem contornar o gasto energético com infraestrutura massiva, pequenas startups não têm essa possibilidade. Foi nesse contexto que surgiu a mudança de rota. Jordan conta que um técnico da equipe atuava paralelamente em um projeto acadêmico que media impulsos elétricos de neurônios reais. “A ideia veio naturalmente. Em vez de simular neurônios, por que não usar os verdadeiros?”, afirma.

Os avanços de 2013 abriram caminho para isso. Naquele ano, a cientista Madeline Lancaster, do Instituto de Biologia Molecular da Áustria, desenvolveu uma técnica capaz de reprogramar células de pele humana em neurônios e agrupá-los em pequenas estruturas esféricas. Esses organoides cerebrais, também chamados de “minicérebros”, tornaram-se ferramentas fundamentais em estudos sobre desenvolvimento neural e doenças. Pesquisadores como o brasileiro Alysson Muotri utilizam esse material para investigar transtornos do espectro autista e testar medicamentos.

A FinalSpark adaptou essa tecnologia à computação. Seus organoides, menores que grãos de areia, podem ser conectados a eletrodos e estimulados para executar tarefas simples de processamento. O sistema, chamado Neuroplatform, permite enviar inputs e receber outputs como em um computador tradicional, embora com menor precisão lógica. Os organoides não substituem circuitos eletrônicos em cálculos exatos, mas conseguem reproduzir processos de aprendizado semelhantes aos de um sistema nervoso, ainda que de forma rudimentar.

Jordan destaca que a principal vantagem é o consumo energético. “Um estudo recente mostrou que a eficiência de neurônios biológicos pode ser até um milhão de vezes maior que a de neurônios artificiais”, diz. “Não significa que um biocomputador alcançará esse nível, mas uma melhoria de cem vezes já seria revolucionária.”

Com o aumento da demanda global por energia em data centers, a empresa acredita que sua proposta pode abrir uma nova frente na computação, especialmente em aplicações de IA. “Quando alguém usa um chatbot, o processamento não ocorre no celular, mas em servidores remotos. Imaginamos que, no futuro, seja possível criar biosservidores completos”, afirma Jordan.

O uso de estruturas biológicas como peças de computador levanta questionamentos éticos, frequentemente associados a imagens distópicas de filmes como “Matrix”. Por enquanto, porém, especialistas afirmam que os organoides utilizados não têm consciência e funcionam apenas como agrupamentos celulares. A discussão pode ganhar outra dimensão se versões maiores forem desenvolvidas, mas esse cenário ainda é distante.

 

(Com O Globo)

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