Domingo, 10 de agosto de 2025
Por Redação O Sul | 27 de julho de 2025
Duas voltas completas de sabão. Movimento circular nas palmas, entre os dedos e, em seguida, nos pulsos. Água escaldante, quase fervente. Joga fora o sabonete. Pega outro. Repete. Era assim, como se seguisse uma receita precisa, quase sagrada, que Howard lavava as mãos – várias e várias vezes ao dia, até a pele ceder. Considerado um “excêntrico”, também separava grão por grão antes de comer, alinhando tudo milimetricamente antes da primeira garfada. E nunca – nunca mesmo – tocava em maçanetas sem usar uma luva ou um pano entre a mão e o metal.
Quem dá vida ao personagem é Leonardo DiCaprio, no filme O Aviador. O longa é inspirado na história real de Howard Hughes – aviador, empresário e diretor de cinema que acumulou fama, fortuna e, ao longo dos anos, enfrentou o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Com um quadro considerado grave, Hughes terminou a vida – verdadeira e fictícia – isolado em um quarto escuro, sem roupa, dominado pelo medo de uma possível contaminação.
Casos como o de Hughes ajudam a cristalizar uma imagem muito específica do TOC. É fato que os rituais de limpeza e a busca por simetria são sintomas comuns do transtorno. Porém, associá-lo apenas a esses tipos de comportamentos é ignorar um universo muito mais amplo e complexo.
“Estamos falando de uma doença polimórfica”, explica o psiquiatra Leonardo Fontenelle, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “Ou seja, apesar de ter uma base comum, ela pode se manifestar de formas muito diferentes.”
O problema é que o TOC ainda é frequentemente retratado de forma estereotipada – e até caricata. Pior: virou sinônimo de capricho do dia a dia. “O paciente com o transtorno não faz o que faz porque gosta. Ele faz porque precisa. É um aprisionamento”, destaca o psiquiatra Daniel Costa, do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP. “Essa visão distorcida só atrapalha: dificulta o reconhecimento da doença e alimenta o preconceito com quem realmente a tem.”
Como o nome já entrega, o transtorno é formado por dois pilares: obsessões e/ou compulsões. A obsessão é um pensamento, imagem ou ideia que invade a mente sem pedir licença e gera desconforto, medo ou culpa. E, quase sempre, antecede a compulsão – um comportamento repetitivo que, pelo menos em teoria, serviria para aliviar esse mal-estar. A lógica é: “Se eu fizer isso, esse pensamento vai embora”.
Essas obsessões e compulsões podem assumir tantas formas que, mesmo para os especialistas, as possibilidades são inimagináveis. Há quem viva com medo de ter causado um acidente, por exemplo, e volte ao mesmo quarteirão diversas vezes para se certificar de que não atropelou ninguém. É como se o cérebro fosse um aplicativo enviando mensagens como “tem certeza?”, “confere de novo”, “e se você estiver errado?”.
Nem sempre, aliás, os sinais estão na superfície. Há compulsões visíveis, mas há também aquelas que ninguém vê, como repetir mentalmente determinadas palavras ou frases, contar números ou realizar preces silenciosas. Nesses casos, é ainda mais difícil identificar o transtorno, como destaca o psiquiatra Elton Kanomata, do Hospital Albert Einstein.
E quando a cabeça insiste, ignorar é uma tarefa quase impossível. “Mesmo sabendo que essas ações não fazem sentido, a angústia é tão grande que o ritual se torna incontrolável”, diz Costa. A compulsão produz um alívio – mas só por um instante. Logo o pensamento volta, a ansiedade cresce e o ciclo recomeça. É um looping exaustivo que faz com que o TOC esteja entre as 10 doenças mais incapacitantes do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
É importante lembrar que as manifestações do TOC citadas até aqui são apenas exemplos. Existe um universo de possibilidades dentro de cada dimensão. E mais: essas manifestações nem sempre aparecem de forma isolada. Muitas vezes, elas se misturam. Ou seja, uma pessoa pode ter obsessão por contaminação e também checar obsessivamente as mãos em busca de manchas de sangue. Outra pode misturar obsessões sexuais com compulsões de limpeza, como se estivesse tentando se livrar de uma espécie de “sujeira moral”.
Segundo o professor da UFRJ, nem sempre há uma conexão lógica entre o conteúdo da obsessão e o tipo de compulsão. Às vezes, parece fazer algum “sentido”; outras, não. O que permanece é a lógica interna do transtorno: o ritual serve para aliviar a ansiedade provocada pelo pensamento obsessivo – e esse alívio, ainda que temporário, é o que reforça o ciclo. Além disso, os sintomas podem mudar com o tempo, mas, em geral, dentro de uma mesma dimensão.
Por fim, vale lembrar que o TOC pode surgir em qualquer fase da vida. Segundo Kanomata, os primeiros sinais costumam aparecer entre a infância e o começo da vida adulta – a média é por volta dos 19 anos, mas em 25% dos casos o transtorno começa antes dos 14. Fontenelle conta que já atendeu crianças com sintomas a partir dos 4 anos. “Nesses casos, os sinais são mais ‘pueris’, como medo de engolir um mosquito ou engasgar com um grão de feijão”, exemplifica.
Quando se trata do tratamento, a ideia é diminuir a intensidade do quadro. Às vezes, casos leves podem ser tratados só com psicoterapia. Já os moderados ou graves geralmente precisam de medicação. Os remédios mais usados são os antidepressivos da classe dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), que ajudam a regular os circuitos cerebrais relacionados ao TOC.
Em relação à psicoterapia, uma das abordagens mais eficazes é a chamada “exposição e prevenção de resposta”. Nela, o especialista e o paciente montam juntos uma espécie de ranking dos medos – do mais leve ao mais desafiador. E, aos poucos, o paciente é incentivado a encarar as situações do cotidiano sem recorrer aos rituais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.