Quinta-feira, 25 de dezembro de 2025
Por Redação O Sul | 7 de março de 2019
A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (Procuradoria-Geral da República) emitiu uma nota técnica em que defende a inconstitucionalidade da MP (Medida Provisória) 870/2019 e dos Decretos 9.673/2019 e 9.667/2019. No documento, o MPF (Ministério Público Federal) afirma que a política indigenista instituída pela MP, assinada no primeiro dia de governo do presidente Jair Bolsonaro, e pelos decretos afronta o estatuto constitucional indígena e viola o direito dos povos originários à consulta prévia, previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Além disso, ao transferir a demarcação de terras da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), a MP coloca em conflito os interesses dos indígenas com a política agrícola da União, e com as atribuições do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, com prejuízo para os povos originários. As informações são da PGR.
Na nota, o MPF defende que a demarcação de terras indígenas volte ao Ministério da Justiça (órgão ao qual a Funai é subordinada), que seria um mediador isento no caso de conflitos de interesses. Assinado pelo coordenador da Câmara de Populações Indígenas, subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha, o documento será enviado ao Congresso Nacional, que analisa a MP, a ministros de Estado e à procuradora-geral da República, Raquel Dodge. A PGR deve se manifestar na ação direta de inconstitucionalidade que questiona a MP 870, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
A nota técnica lembra que, desde 2002, o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT. A norma garante aos povos indígenas direito à consulta prévia, livre e informada nas matérias que afetam seus direitos e interesses. O próprio Supremo já conferiu à Convenção estatura constitucional. Assim, ao editar a MP no primeiro dia de governo, sem ouvir os povos indígenas, o novo governo não observou o direito básico à consulta prévia. Por isso, a medida provisória seria nula e deve ser rejeitada pelo Congresso Nacional, defende o MPF.
A Constituição de 1988 garantiu aos índios o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Também assegurou legitimidade das atividades produtivas indígenas, reservando-lhes o direito à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e às suas atividades. Essas garantias estão previstas no artigo 231, afeto ao Título VIII “Da Ordem Social”, enquanto a política agrícola está disciplinada no artigo 187, contido no título VII “Da Ordem Econômica e Financeira”, deixando clara a distinção que o constituinte estabeleceu entre esses títulos e seus respectivos conteúdos.
A nota técnica defende que, ao transferir para o Mapa a demarcação de terras indígenas, a MP desconsidera e despreza a distinção entre o desenvolvimento indígena e o não indígena, feita pela própria Constituição, e reconhecida pelo STF em julgamentos anteriores. Isso promove, na prática, a reedição de uma política integracionista superada pela constituição de 1988 e que gerou intensa violações dos direitos indígenas no século passado. Tal perspectiva pressupõe que devem os índios se aculturar, abrir mão de seu modo de vida e de produção tradicionais, para se integrar à sociedade como trabalhadores rurais conectados a uma política agrícola voltada para não indígenas.
“O índio não deve e não necessita ser integrado à sociedade brasileira, pois dela já faz parte desde sua gênese”, defende Bigonha na nota técnica. “Superado esse falso dilema da integração, como um dos atores que integram nossa sociedade, deve ele ser respeitado em sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (art. 231, CF/1988)”. Segundo o texto, qualquer medida que promova o retorno da política indigenista integracionista vai contra a Constituição.
Além disso, a transferência da demarcação de terras para o Mapa representa claro conflito de interesses entre a política agrícola e fundiária de caráter geral, defendida pelo ministério, e os direitos dos índios de preservar o modo de vida e suas terras tradicionalmente ocupadas. As atividades produtivas dos índios, garantidas pela Constituição, não são um subsistema da política agrícola, diz a nota técnica. O MPF defende que o Ministério da Justiça seria um “campo administrativo neutro, isento, não comprometido com a gestão dos interesses que se apresentavam antagônicos às peculiaridades culturais dos povos indígenas”.
A nota técnica ressalta que a política fundiária indígena esteve submetida à pasta da Agricultura até 1967, com o Serviço de Proteção ao Índio. Isso resultou no massacre de milhares de índios e nas atrocidades descritas no Relatório Figueiredo, o que acabou levando o governo a criar a Funai e subordiná-la, após 1988, ao Ministério da Justiça.