Quarta-feira, 28 de maio de 2025
Por Redação O Sul | 17 de fevereiro de 2023
No ano passado, o Hospital Fernández, da rede pública da capital argentina, realizou 982 partos, dos quais 85 foram filhos de mulheres russas que chegaram ao país com uma gestação avançada – a grande maioria no segundo semestre do ano. Somente em janeiro deste ano, dos 120 partos feitos num dos hospitais mais procurados por estrangeiros em Buenos Aires, 28 foram bebês de casais russos, formados, em muitos casos, por homens que, em plena guerra na Ucrânia, fugiram da convocação das Forças Armadas de seu país, contaram ao jornal O Globo profissionais da área da saúde que estão em contato com um dos fenômenos sociais do momento na Argentina: o baby boom envolvendo russas que chegam ao país em busca de paz e de um passaporte que lhes permita driblar as sanções que afetam seu país.
Uma denúncia anônima sobre agências que estariam lucrando com o desespero de mulheres russas já está em mãos da Justiça argentina, e todas as semanas é noticiada a detenção de grávidas russas no Aeroporto Internacional de Ezeiza, por supostamente mentirem em declarações de entrada ao país. Essas informações foram negadas pelo advogado Christian Rubilar, que semana passada conseguiu liberar várias russas retidas no aeroporto. Segundo ele, “os funcionários da Imigração se enganaram ao analisar as respostas, e elas foram vítimas de discriminação e xenofobia”.
O improvisado formulário que, segundo o advogado, foi implementado apenas com russas grávidas e ao qual O jornal O Globo teve acesso, pergunta o itinerário do voo, até quando pretendem ficar na Argentina, se têm familiares argentinos, se alguém vai buscá-las no aeroporto, quanto dinheiro em espécie possuem, qual sua profissão e o que vieram fazer no país. No habeas corpus que conseguiu liberar várias russas, Rubilar argumenta que a detenção dessas mulheres violou, entre outras normas locais e internacionais, a Convenção de Belém do Pará contra todas as formas de violência contra a mulher.
De acordo com a Direção Nacional de Migrações, em 2022 entraram no país 10,5 mil grávidas russas, sendo 5,8 mil delas nos últimos três meses do ano. O objetivo de todas é ter filhos argentinos e, com eles, acesso à cidadania e a um passaporte argentino, que lhes permitiria entrar sem necessidade de visto em mais de 170 países, muitos dos quais atualmente limitam a entrada de russos.
Agências locais associadas a parceiros russos não identificados promovem o “turismo de nascimento” com a promessa de que, “em nenhum lugar do mundo, você poderá obter um passaporte tão rapidamente, como na Argentina, depois de ter seu filho”. De fato, segundo informaram meios locais, algumas russas conseguiram um passaporte argentino em menos de seis meses, pagando um custo estimado em até US$ 35 mil. Isso é, entre outras coisas, o que a Justiça local está investigando.
De acordo com Rubilar, especializado em direito migratório e tráfico de pessoas, “obter a cidadania argentina, pelas vias legais, pode demorar de três a cinco anos, mesmo tendo um filho argentino”.
“Todas chegam com a expectativa de obter documentação que drible as sanções contra a Rússia. Chegam buscando liberdade, e muitos se aproveitam desse desespero”, explica o advogado, que conseguiu evitar a deportação de mulheres com mais de 30 semanas de gestação. “Por incrível que pareça, os funcionários argentinos não sabem sequer usar direito o tradutor do Google e entenderam que as mulheres tinham escrito que não tinham dinheiro, quando o que elas tinham dito era que ninguém iria buscá-las. Um escândalo.”
A diretora nacional de Migrações, Florencia Carignano, defende a atuação das autoridades locais e argumenta que “os controles devem ser rígidos para evitar que cidadãos que não permanecerem sequer um mês no país tenham acesso a uma cidadania e ao passaporte, um dos mais seguros do mundo e com acesso a 171 países, sem visto”.
As reportagens publicadas em meios locais, algumas falando em “falsas turistas”, desataram um clima de muito medo entre as mulheres russas, comentaram tradutoras que as acompanham e preferiram não ser identificadas. No Hospital Fernández, contou a médica Liliana Voto, chefe do Departamento Infanto-Juvenil, “a comunicação com as pacientes russas é muito difícil, porque elas não falam nada, e não entendem espanhol. Pusemos cartazes avisando que devem vir com um tradutor”.
“Pelo que observamos, são pessoas de classe média e média alta, mas muitas não falam sequer inglês. Fazemos as consultas com o tradutor do Google, é bem difícil explicar o que devemos explicar a uma grávida nessas condições. Fazemos o melhor que podemos”, comenta Liliana. As informações são do jornal O Globo.