Segunda-feira, 24 de novembro de 2025
Por Redação O Sul | 14 de junho de 2020
Uma das repercussões do movimento antirracista que seguiu o assassinato de George Floyd é o aprofundamento do debate sobre como e às margens de quem a História é contada. Estátuas de escravocratas, generais confederados e colonizadores foram derrubadas por manifestantes que as veem como símbolos de dominação, genocídio e violência, dando cara a uma antiga demanda para que as visões dominantes do passado sejam revistas.
Os episódios incendiaram um debate sobre o papel que os monumentos exercem e seu significado social. Alguns historiadores argumentam que as estátuas são patrimônios históricos e, portanto, devem ser preservadas. Removê-las, eles dizem, pode facilitar um esquecimento da História. Outros, no entanto, entendem as esculturas como ícones opressores que devem ser ressignificados.
O patrimônio público tem um papel-chave na formação da memória social, explica Amilcar Pereira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para ele, mudar a História não deveria ser um problema, pois a disciplina está em processo intermitente de construção. A seu ver, manter ou não os monumentos diz respeito ao tipo de sociedade em que desejamos viver.
“Queremos uma sociedade em que todos os seres humanos sejam tratados em termos de igualdade? Para isso, quais memórias precisamos celebrar, inclusive de maneira pública?”, indaga o historiador. “Todo o movimento para derrubar estátuas de traficantes de pessoas escravizadas, de racistas, de generais confederados vai no sentido de pôr em xeque a História contada através do patrimônio.”
Questionar o significado destas obras não é um fenômeno novo: estátuas de Luís XV foram ao chão durante a Revolução Francesa, em 1789. Com o colapso soviético, bustos de Lenin e Stálin tiveram o mesmo destino. A imagem do fim do regime de Saddam Hussein é a derrubada de sua estátua em Bagdá, por soldados americanos. São, mais que tudo, sinais de rupturas de regime.
Para o historiador Kirk Savage, professor da História da Arte na Universidade de Pittsburgh, no entanto, o fenômeno atual deve ser compreendido de outra maneira:
“O que vemos nos Estados Unidos, e talvez no Brasil, é diferente, porque esses monumentos não são marcos de um regime político em particular. São símbolos da supremacia branca que está entremeada na formação dos nossos países e das nossas sociedades”, diz o especialista em monumentos.
Nos Estados Unidos, segundo levantamento feito em 2019 pelo Southern Poverty Law Center, há ao menos 1.741 símbolos confederados, concentrados no Sul. Muitos deles são controversos desde que foram erguidos, majoritariamente entre 1890 e 1920, nos primeiros anos da segregação.
“Esses monumentos são representados como se fossem vencedores, mas, na realidade, os confederados perderam a Guerra Civil Americana”, lembra Ana Lúcia Araujo, da Universidade Howard, especialista na história transnacional da escravidão. “De certa maneira, no entanto, a guerra simbólica foi ganha por eles, principalmente no Sul, onde a segregação continua bastante forte.”
Nos EUA, o debate ganhou força em 2015, após o massacre de Charleston, na Carolina do Sul, quando nove negros foram mortos em um crime racial. Desde então, mais de 120 monumentos confederados foram removidos, mas muitas discussões e promessas não resultaram em nada.
Desta vez, no entanto, a demanda por uma revisão histórica é mais ampla, mirando exploradores como Cristóvão Colombo, que descobriu o continente americano em 1492 — estátuas suas foram vandalizadas em várias cidades dos Estados Unidos e do México — e colonizadores como o rei belga Leopoldo II. Até mesmo Winston Churchill, herói da Segunda Guerra, tornou-se alvo graças a partes controversas de seu legado.
Espaço para contexto
No Brasil, uma lei de 2013 exige que ruas não levem o nome de figuras que defendam ou sejam relacionadas com a escravidão. No fim de 2019, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), sancionou uma lei distrital que proíbe o uso de nomes de torturadores reconhecidos pela Comissão da Verdade em espaços públicos. A cidade de São Paulo, em paralelo, tem um projeto para renomear ruas que homenageiam figuras da ditadura. Entre 2015 e o início de 2020, cinco logradouros tiveram seus nomes trocados. Restam ao menos 33.
Borba gato
Por aqui, a polêmica dos monumentos também não vem de hoje. Em 2019, o desfile histórico da Mangueira levou à Sapucaí uma réplica do Monumento às Bandeiras coberto com o sangue indígena e com palavras como “ladrões” e “assassinos”. Três anos antes, a escultura original, no Parque do Ibirapuera, amanheceu coberta de tinta, tal qual a estátua de Manuel de Borba Gato, também na capital paulista.