Quarta-feira, 07 de maio de 2025
Por Redação O Sul | 15 de maio de 2023
O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pagou R$ 4,4 milhões para enviar ao Território Yanomami alimentos que não são consumidos pelos indígenas, durante uma crise humanitária. Desprezando recomendação técnica, a Funai assinou o contrato milionário para comprar cestas básicas contendo sardinha e linguiça calabresa. O peixe enlatado e o embutido não fazem parte da dieta local. Também não há registros de que os produtos foram entregues integralmente.
A área técnica já havia alertado o governo e o Ministério Público (MP) a respeito da dieta dos indígenas. “Os yanomamis não comem sardinha nem calabresa”, informou a coordenadora da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami, Elayne Rodrigues Maciel, responsável pelo órgão da Funai com atribuição exclusiva sobre a Terra Indígena Yanomami, em depoimento ao Ministério Público dez meses antes da compra.
Na ação que ouviu a servidora, de 2021, o MP pediu a condenação da União para considerar estudos antropológicos e nutricionais na composição das cestas. A Justiça acatou o pedido. Conforme o jornal O Estado de S. Paulo, mesmo depois da condenação, o governo Bolsonaro não só voltou a adquirir os alimentos como assinou a maior compra já realizada para terra indígena de linguiça e sardinha em lata.
Ainda de acordo com a publicação, a Funai, sob o governo Bolsonaro, comprou 19 toneladas de bisteca para enviar ao Vale do Javari (AM), mas a carne congelada não chegou às aldeias. Os contratos seguem em vigor no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. A Fundação disse que irá avaliar as compras. O delegado Marcelo Xavier, presidente da Funai no mandato de Bolsonaro, não se manifestou.
Campeã
A empresa contratada para vender ao governo linguiça e sardinha enlatada foi aberta em 2020, apenas dois meses antes da assinatura do primeiro contrato. Com sede em Boa Vista, a H. S. Neves Junior rapidamente se tornou a campeã nacional em venda sem licitação para a Funai na gestão Bolsonaro.
Helvercio Sevalho Neves Junior, de 26 anos, se apresenta como dono da empresa. No mesmo ano em que abriu a firma, ele teve de devolver R$ 3 mil para a União de auxílio emergencial que solicitou indevidamente durante a pandemia da covid.
Na Receita Federal, a firma de Helvercio declara que vende carne, automóveis, roupas e bicicletas. Em dois anos, a empresa se especializou em contratos com as Forças Armadas e com o governo de Roraima. Sob a gestão de Antonio Denarium (PP), o Estado fechou contratos de R$ 188 milhões com a H. S. Neves Junior. As Forças, por sua vez, acertaram compras que, somadas, totalizam R$ 586 mil.
Entre todos os territórios indígenas do País, a terra yanomami foi onde o governo federal mais despendeu recursos, ao longo de quatro anos, para comprar alimentos. Os gastos chegaram a R$ 7,8 milhões. Mesmo assim, centenas de crianças indígenas morreram, vítimas de desnutrição. A tragédia fez o governo Lula decretar emergência em saúde pública, “diante da necessidade de combate à desassistência sanitária dos povos que vivem no território yanomami”.
Desperdício
Líderes yanomamis apontam o desperdício de dinheiro com cestas básicas não consumidas, enquanto demandas urgentes por atendimento médico, socorro a crianças desnutridas e expulsão de garimpeiros ilegais na região não eram atendidas. “Os yanomamis não comem sardinha, não comem calabresa. Então, eles jogavam fora, porque isso não é suficiente. Isso não mata a fome”, afirmou o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dário Kopenawa, representante das comunidades que vivem no território.
Os indígenas relatam que as cestas básicas “caíam do céu”, trazidas por aviões, e vários alimentos estragavam assim que chegavam ao chão. A sardinha e a calabresa que sobravam, por outro lado, não eram consumidas e acabavam no lixo. “Não nos consultaram sobre o envio desses alimentos. Foi uma grande surpresa para nós. Nosso objetivo era combater as doenças e expulsar os invasores”, disse Kopenawa.
Consumir alimentos que não fazem parte da cultura tradicional pode comprometer ainda mais a saúde dos yanomamis. Para o MP, alimentos como sardinha e calabresa “podem gerar doenças e hábitos alimentares ruins, que comprometem a aceitação dos alimentos saudáveis e tradicionais produzidos localmente”.
“Competência”
Os contratos para compra do enlatado e do embutido foram assinados por Ednaldo Barbosa de Araújo, que se apresenta como procurador da empresa de Boa Vista. Sobre a firma ter conseguido fechar o maior contrato da Funai com apenas dois meses de existência, disse que se trata de “competência”.
“Isso é apenas competência. Se eu abrir uma empresa na segunda-feira e, na terça, tiver uma licitação de R$ 100 milhões, não há impedimento nenhum”, afirmou Ednaldo. Ele responsabilizou a Funai pela escolha de sardinha para compor a cesta básica.
Para Ednaldo, não há problema no fato de a firma estar em nome de um jovem de 26 anos e já ter faturado mais de R$ 100 milhões com o poder público em pouco tempo de funcionamento. “Quer dizer que a pessoa tem de estar velha para ter empresa?”, questionou.