Quarta-feira, 08 de outubro de 2025
Por Redação O Sul | 6 de outubro de 2025
Artur de Medeiros Queiroz nasceu com pouquíssimas células de gordura no corpo. Hoje, aos 34 anos, ele tem percentual de gordura corporal semelhante ao de atletas de alto rendimento.
Pode até soar como algo desejável para muitas pessoas, mas a composição corporal de Artur foi causada por uma mutação genética que, na prática, significou uma vida de dieta rigorosa e uma preocupação constante com a saúde.
O quadro de Artur – raro, com um diagnóstico estimado a cada 1 milhão de pessoas – se chama Síndrome de Berardinelli, ou lipodistrofia congênita generalizada.
Embora a condição tenha características opostas às da obesidade, as consequências da lipodistrofia são, curiosamente, semelhantes aos problemas trazidos pelo excesso de gordura: desregulação metabólica e risco de diferentes doenças.
Para quem tem o quadro, faltam adipócitos — células que armazenam gordura — em quantidade suficiente, e o excesso acaba se acumulando onde não deveria.
“Por meio da circulação sanguínea, essa gordura pode se depositar em outros órgãos, como o fígado, o pâncreas e os músculos. Isso pode causar inflamação no pâncreas (pancreatite), acúmulo de gordura no fígado (esteatose hepática) e outros comprometimentos metabólicos graves”, explica Julliane Campos, professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e especialista em biologia do tecido adiposo.
A depender da mutação genética envolvida e da gravidade do quadro, pessoas com a síndrome também podem apresentar complicações em diferentes sistemas do corpo, como alterações cardíacas e respiratórias, disfunções hormonais que afetam a puberdade e a fertilidade, problemas renais, manifestações na pele e, em alguns casos, alterações neurológicas.
Outra consequência comum é a falta de saciedade, agravada pela limitação na quantidade de alimentos que essas pessoas podem consumir — especialmente os que contêm gordura.
Isso ocorre porque a leptina, hormônio que sinaliza ao cérebro quando estamos satisfeitos, é produzida pelas células de gordura, muito reduzidas nesses pacientes.
Natural de Caicó, na região do Seridó, no Rio Grande do Norte, Artur recebeu o diagnóstico cedo.
“Ainda pequeno, as características físicas do quadro já eram bem visíveis, embora muitas das vezes se confundem com uma pessoa desnutrida, e muitos médicos ainda não conhecem a síndrome. Mas minha avó materna teve um filho com essa síndrome, o que facilitou o diagnóstico para mim.”
Mas descobrir a doença ainda na infância também trouxe desafios emocionais a Artur.
“Minha mãe vendia salgadinhos, e eu ficava com muita vontade de comer – é difícil entender a restrição quando somos crianças. Tudo fora do ‘saudável’ era proibido para mim. Meu lanche da escola era sempre o mesmo: maçã, banana e uvas.”
“Na escola, cheguei a esconder o dinheiro do lanche dos meus amigos só para não ver eles comendo as guloseimas da cantina. Não era por maldade. Depois, no final do intervalo, devolvia o dinheiro na bolsa. E, por ter um apetite muito maior do que o normal, às vezes acabava sendo deixado de fora de festinhas de aniversário.”
Artur também não pode consumir qualquer quantidade de bebida alcoólica, pois seu fígado tinha a função “anormal” de metabolizar as gorduras, o que tornava o consumo dessas substâncias uma sobrecarga fácil para o órgão.
“Não era algo que eu queria fazer de qualquer forma, mas, na juventude, acabou me deixando ‘excluído’ e com fama de antissocial.”
Ele teve apoio psicológico por anos, e também fez terapia de fala e fisioterapia.
“Eu tinha dificuldades de fala, às vezes gaguejava ou trocava letras, e também dificuldades para andar, sempre andava na ponta dos pés. E minha vida melhorou muito ao cuidar da minha saúde mental. O acompanhamento me ajudou a me fortalecer e a criar mecanismos de defesa para enfrentar as adversidades da vida, como preconceito e discriminação, que sempre sofri tanto na escola quanto fora dela.”
Na opinião de Artur, as mulheres com a condição costumam sofrer ainda mais preconceito por conta da aparência que a lipodistrofia dá.
“Hoje em dia, eu não passo mais por discriminação como na infância. Mas as mulheres ainda enfrentam muito mais isso. Como a gente não tem gordura, o corpo acaba ficando mais musculoso, com um padrão que muitas vezes é visto como mais masculinizado. E as pessoas ainda têm uma imagem idealizada do que seria o corpo feminino, né? Então, quando veem uma mulher com a síndrome, com um corpo mais definido, mais forte, que lembra o de uma fisiculturista, acabam julgando.”
Nos últimos anos, Artur desenvolveu diabetes, mas manter a alimentação regrada na maior parte do tempo evitou complicações mais graves. Ele descreve a necessidade de consumir apenas o que é saudável como uma questão de sobrevivência.
“Há pessoas com lipodistrofia que, ainda bem novas, já enfrentam problemas sérios, como diabetes, precisam tomar insulina, e também podem ter complicações no fígado, tipo cirrose, ou nos rins, muitos precisando de hemodiálise. No meu caso, sempre consegui controlar bem.”
A prática constante de exercícios físicos também faz parte da rotina de cuidados de Artur — e é essencial para quem tem o diagnóstico.
Manter-se ativo ajuda na sensibilidade à insulina, já que durante a atividade física as células musculares aumentam a captação de glicose, sem a necessidade de insulina, tornando o corpo mais eficiente no uso da glicose disponível no sangue, o que reduz a resistência à insulina e diminui o risco de diabetes tipo 2.
Além disso, o exercício contribui para controlar os níveis de gordura no sangue, aumentando o HDL (colesterol bom) e diminuindo os triglicerídeos e o LDL (colesterol ruim), o que reduz o risco de doenças cardiovasculares.
Para quem tem lipodistrofia, o exercício também é especialmente importante por ajudar a reduzir a gordura visceral, que é a gordura acumulada ao redor dos órgãos internos, como fígado e pâncreas, e que está diretamente ligada ao risco de doenças metabólicas e cardiovasculares.
Há diferentes formas de lipodistrofia. De acordo com a professora Julliane Campos, na forma generalizada, que é a mais grave, os pacientes podem apresentar alterações em até quatro genes ligados ao metabolismo — ou seja, genes que regulam a formação dos adipócitos ou o próprio processamento da gordura.
“O que esses casos têm em comum é que, com os genes mutados, ocorre uma falha na formação das células de gordura. Por isso, esses indivíduos já nascem com uma quantidade reduzida desses adipócitos.” As informações são da BBC News.