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Por Redação O Sul | 9 de maio de 2021
A escritora Clarice Lispector (1920-1977) tinha uma caligrafia bonita, como se pode observar em suas cartas e primeiros manuscritos. Mas, ao final da vida, acometida por doenças, a letra começou a ficar mais trêmula, nervosa, quase rabiscos incompreensíveis. É o que o leitor poderá observar na luxuosa edição de A Hora da Estrela, volume que traz a versão manuscrita integral da obra lançada por Clarice no ano de sua morte. Trata-se do primeiro trabalho em português da editora francesa Editions des Saints Pères, especializada na reprodução de grandes originais da literatura. A tiragem é especial, de 1 mil exemplares numerados. “Clarice é uma autora brasileira muito importante na França”, afirma Jessica Nelson, editora e cofundadora da Saints Pères. “Acompanhamos seu trabalho há muito tempo. O encontro com o filho dela, Paulo Gurgel Valente, foi decisivo para nossa escolha, e, em seguida, a beleza do manuscrito e o que revela sobre A Hora da Estrela.”
A reprodução é apresentada o mais próximo possível de sua aparência original, como se a romancista tivesse acabado de largar sua caneta, revelando também as correções, variações e notas utilizadas na elaboração do romance. Nela, é possível encontrar mais de uma versão para diferentes passagens-chave do texto, como, por exemplo, duas versões da cena final do livro, o momento da morte de Macabéa – sua “hora da estrela”. A versão publicada seria o resultado da fusão dessas duas variantes.
Os originais de A Hora da Estrela estão arquivados no Instituto Moreira Salles, desde 2004. Os manuscritos são importantes não apenas pelo aspecto histórico, mas também por registrarem a forma como Clarice trabalhava em seus textos. “Desde as primeiras obras, a escritora adotara o método da anotação imediata. Assim, segundo Nádia Battella Gotlib, sua biógrafa, ‘passa a carregar um caderninho, onde vai fazendo as suas anotações. São as notas, soltas, que, em grande quantidade, e referentes ao mesmo assunto, constituirão já o seu romance’”, observa o professor Fábio Frohwein, em texto publicado no site do IMS. “Com o tempo, as anotações seriam feitas em qualquer tipo de papel, facilmente à mão, e até por outra pessoa, a quem Clarice solicitava ajuda”, continua ele. “Por isso, vemos notas de A Hora da Estrela em fragmentos de papel, folhas de cheque e envelopes.”
Clarice Lispector escrevia de forma muito peculiar: se, em alguns momentos, as anotações nasciam em fluxos contínuos, sobre folhas de caderno, em outros, realizava a chamada “escrita imediata”, ou seja, bilhetes dispersos e anotações em papéis de todos os tipos (envelopes usados, cartões de visita, folhas rasgadas, lembretes de compromissos). Em alguns momentos, quando não podia pegar em uma caneta ou lápis, pedia a alguém que estivesse por perto para rascunhar o que passava em seus pensamentos – assim, não é surpresa encontrar, em alguns fragmentos, caligrafias diversas.
“Escrevo de um modo cada vez mais pobre”, observava a autora a respeito de A Hora da Estrela. “É claro que há a tentação de fazer palavras bonitas: conheço adjetivos esplendorosos, substantivos carnudos e verbos esguios que agem agudos no ar. Mas se eu transformasse o pão dessa moça em ouro – ela não poderia mordê-lo e ficaria com ainda mais fome.” Publicado no ano da morte da escritora, 1977, o romance é considerado um dos mais importantes de sua carreira não apenas pelas qualidades literárias, mas também por apresentar uma reflexão franca sobre a própria vida e sua atividade de escritora. A trama acompanha Macabéa, uma jovem que fugiu da miséria de sua Alagoas natal para se tornar datilógrafa no Rio de Janeiro. O romance evoca o confronto entre o escritor brasileiro moderno e a miséria da população brasileira por meio de um conflito linguístico: como é possível falar dessa miséria sem distorcê-la?
Clarice foi uma escritora cuja obra ardente, enigmática e responsável por um movimento ficcional absolutamente novo despertou paixões. Daí a expectativa de que esta reprodução dos manuscritos provoque atenção. Em seus rascunhos, é possível notar documentos curiosos – como as 13 tentativas de título testadas por ela para nomear a obra, além de vestígios da identificação da autora com seu narrador; os erros de gênero perceptíveis nos rascunhos quando usa o feminino para falar dele; fragmentos que revelam a vida pessoal da escritora, como o horário de seus compromissos e mesmo o endereço de sua casa – o do último apartamento que ocupou no Rio antes de morrer, em dezembro de 1977; e até marcas de batom.
Foi justamente este último detalhe que encantou o americano Benjamin Moser, autor de Clarice, alentada biografia de Clarice Lispector. Ao Estadão, ele disse que fez uma viagem no tempo ao folhear a edição com reprodução do original de A Hora da Estrela. “Não estão ali apenas os manuscritos do romance, mas também os últimos escritos feitos por ela”, comenta ele, que manuseou inúmeros documentos e originais para a escrita de seu livro. “Estão ali os esboços que Clarice fez enquanto estava no hospital, bilhetes escritos com uma caligrafia já muito ruim. Mas, para clariceanos como eu, a grande emoção foi se deparar com uma marca de batom, possivelmente deixado ali quando ela retirou um excesso nos lábios. É como estar fisicamente muito perto dela.”
De fato, manuscritos, em geral, são matérias vivas, mas, no caso de A Hora da Estrela, despertam mais interesse por revelar, com detalhes, quase todo o processo de escrita. “Originais oferecem uma visão única dos bastidores da criação”, observa Jessica Nelson, fundadora e editora geral da editora Saints Pères. “Trata-se de um mergulho íntimo no laboratório de escrita dos autores, e de uma experiência de leitura muito diferente e comovente. Por que um autor escolheu uma palavra em vez de outra? Como ele retrabalhou uma passagem que mais tarde se tornou famosa? O que havia nas versões anteriores que não existe mais na versão editada? O que podemos aprender por meio das hesitações e correções? Hoje, essas etapas do trabalho, esses documentos testemunhos, tendem a desaparecer porque os artistas usam mais o computador do que papel e caneta.”
A Saints Pères foi fundada em 2012, em Paris, buscando oferecer ao leitor a reprodução de grandes manuscritos da literatura. Logo, as pesquisas e negociações com detentores dos documentos permitiram a criação de um catálogo com originais franceses (Victor Hugo, Marcel Proust, Gustave Flaubert) e anglo-saxões (Charlotte Brontë, F. Scott Fitzgerald, Virginia Woolf).