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Por Redação O Sul | 25 de junho de 2019
No país onde nasceu o movimento “Nenhuma a menos”, em 2015, e que este ano mergulhou novamente num intenso debate legislativo sobre a legalização do aborto, o feminismo está ganhando espaço em mundos até pouco tempo totalmente dominados pelos homens, entre eles o do tango. As informações são do jornal O Globo.
No embalo do internacional #MeToo e dos avanços das mulheres argentinas nos últimos anos, as tangueiras lançaram no último fim de semana o primeiro “Protocolo para Milongas” com o principal objetivo de prevenir e erradicar a violência de gênero na dança que representa a Argentina no mundo. Milongas são as tradicionais danceterias de tango.
O documento foi divulgado na sequência do Tango Fêmea, o primeiro festival feminista de tango, realizado em março passado. E foi cerzido no momento em que mulheres homossexuais começam a ganhar destaque na música e na dança no universo do tango, entre elas a cantora Julieta Laso, companheira da premiada cineasta Lucrecia Martel (de “O pântano”).
Em seu primeiro disco, “Martingala”, lançado no ano passado, a cantora causou sensação com a música do mesmo nome e uma letra que poderia ter sido considerada ousada em outras épocas, mas aparentemente não para a Argentina dos dias de hoje: “E para tua boca de mulher vai meu amor morto de sede”. Letras clássicas de tangos do século passado são profundamente machistas e falam sobre violência explícita contra as mulheres.
Contra isso e, sobretudo, contra o que consideram maus tratos às mulheres no ambiente tangueiro, o Movimento Feminista do Tango nasceu no começo de 2018. Uma de suas fundadoras, Natalia Giacchino, conta que, depois de um ano de intenso trabalho, as neo-tangueiras decidiram apresentar o documento com o objetivo de ser uma ferramenta contra a violência de gênero nas milongas. Em muitas delas, disse Natalia, “os homens continuam sendo uma presença dominante, e isso gera incômodo nas mulheres”.
Chega de “cabeçadas”
Um dos códigos mais clássicos do tango é a chamada “cabeçada”, gesto com o qual um homem chama (praticamente ordena) uma mulher para dançar. Segundo Natalia, que é dançarina profissional de tango, “esse gesto pode parece simples, mas muitas vezes é agressivo e fez com que muitas mulheres deixassem de frequentar lugares de dança”.
“Amamos o tango, é nossa paixão, mas os que nos criticam precisam entender que ele deve ser amável para todos. Não devem existir esses constragimentos. O documento é um plano de ação para que, quando uma pessoa seja assediada ou agredida, existam mecanismos para protegê-la. Também queremos que o agressor seja quem tenha de ir embora (das milongas) e não a agredida”, disse Natalia.
Visto de fora, o tango ainda é uma dança controlada pelos homens. De fato, em muitas milongas portenhas, mulheres que não sabem dançar são chamadas à pista com o argumento de que “não é preciso saber os passos, afinal, o homem te leva”. Segundo Natalia, assim é o universo tradicional do tango. Já nas escolas de dança mais modernas os alunos “aprendem os dois papéis, e a dança se estuda como movimento integral”.
“As resistências existem e são grandes. Muitos nos acusam de odiar os homens, e não é nada disso, simplesmente queremos que todas as pessoas possam estar à vontade”, disse a dançarina.
Danceterias interessadas na mudança
No último domingo, mais de dez danceterias de tango participaram do evento convocado pelo movimento em Buenos Aires. Nesta segunda, muitas outras já entraram em contato para pedir detalhes do protocolo. O texto está dividido em três partes: fundamentos, plano de ação e sugestões de boas práticas.
“Recomendamos o uso de uma linguagem inclusiva, abolição das imagens das mulheres como objeto e de homens em atitude prepotente, igualdade ao espaço a mulheres e homens e pagamento de salários similares também para os profissionais”, disse Natalia.
Ao longo de todo o ano passado, o movimento trabalhou com comissões dedicadas a assuntos específicos sobre a violência de gênero no tango. Foram recebidas dezenas de denúncias, e as mulheres agredidas contaram com assessoramento e acompanhamento do grupo.
“Decidimos que tinha chegado a hora de atuar juntas. Quando uma mulher faz uma denúncia, ela sempre sofre retaliações, é inevitável. Por isso temos de estar unidas”, concluiu a dançarina.