Sexta-feira, 19 de dezembro de 2025
Por Redação O Sul | 15 de dezembro de 2025
Na última quarta-feira (10), começou a valer a lei australiana que proíbe que pessoas com menos de 16 anos acessem qualquer rede social. Extremista para alguns, inócua para outros, vejo essa medida como um movimento desesperado de uma sociedade que não sabe mais como lidar com os notórios males que essas plataformas causam às pessoas, especialmente os mais jovens. Diante do cinismo e da falta de colaboração das big techs, a Austrália decidiu “cortar o mal pela raiz”.
Enquanto isso, a Europa é pressionada pelo governo americano para afrouxar suas leis que protegem cidadãos contra abusos dessas companhias. A iniciativa australiana pode assim definir um novo marco civilizatório contra um grave problema que afeta todos os países, mas cujos governos repetidamente falham em encontrar soluções.
Ao contrário do que muitos dizem, não se trata de “perseguição” a essas empresas. Há apenas alguns dias, por exemplo, documentos de um processo judicial nos Estados Unidos revelaram a postura da Meta diante dos resultados de um estudo interno. Segundo ele, adolescentes que ficaram uma semana sem Facebook relataram menos depressão, ansiedade e solidão. Mas em vez de publicar os resultados e buscar soluções, a empresa enterrou o estudo, alegando falhas metodológicas.
Nada disso é isolado. Apesar dos benefícios que essas plataformas também nos oferecem, é inegável que elas distorcem relacionamentos. Tanto que as “palavras do ano” recentemente escolhidas pelos prestigiosos dicionários Oxford (“isca de raiva”) e Cambridge (“parassocial”) descrevem diferentes facetas dessa mudança.
Resta saber se a nova lei australiana conseguirá reduzir, pelo menos entre os mais jovens, a deterioração da saúde mental provocada pelas redes sociais, e se isso será replicado por outros países, a despeito da pressão americana.
A expressão “isca de raiva” (“rage bait”, no original em inglês) significa conteúdo online “deliberadamente criado para provocar raiva ou indignação ao ser frustrante, provocativo ou ofensivo”, como uma prática intencional na disputa por atenção. Os organizadores do Dicionário Oxford explicaram que essa prática triplicou neste ano e que, se antes a Internet atraía a atenção pela curiosidade, agora ela sequestra e influencia nossas emoções mais negativas, como raiva e ódio.
“Parassocial”, por sua vez, representa sentimentos de intimidade unilaterais que muitas pessoas projetam em celebridades. Apesar de não ser algo novo, isso se tornou muito mais comum graças às redes e, mais recentemente, com a inteligência artificial, com pessoas que passam a se relacionar afetivamente com chatbots.
A nova lei australiana responsabiliza as próprias big techs por verificar a idade dos usuários e impedir que menores acessem as redes sociais, sob pena de multas que podem chegar a 50 milhões de dólares australianos (cerca de R$ 181 milhões). Meta e Google já iniciaram a remoção preventiva de perfis. Com ela, o governo local admite tacitamente que o ambiente digital se tornou tóxico demais para mentes em formação.
Isso nos remete imediatamente à profética declaração de Umberto Eco em 2015, de que a Internet havia dado voz a uma “legião de imbecis”. O drama atual é que as redes sociais não apenas promoveram o “idiota da aldeia” a portador da verdade, como sugeriu na época o filósofo italiano, mas o transformaram em um influenciador rentável. O “rage bait” industrializa a estupidez, com a indignação superando os fatos. A verdade perde seu valor intrínseco e torna-se apenas uma ferramenta performática para gerar engajamento.
O novo regime afetivo, moldado por algoritmos que amplificam extremos, corrói vínculos silenciosamente. O filósofo polonês Zygmunt Bauman descreveu essa “liquefação” da vida, em que relações frágeis servem ao mercado, mas destroem o bem comum. Ao nos afastar do real, as redes substituíram sentimentos verdadeiros por emoções performáticas, algo visível nestas duas “palavras do ano”.
Bauman explicou como nos tornamos simultaneamente consumidores e produtos. Nas redes sociais, oferecemos versões editadas de nós mesmos para serem curtidas, comentadas e consumidas. Quando o engajamento cai, nos sentimos descartados, e quando alguém discorda de nós, bloqueamos a pessoa. Eco antecipou isso, pois, quando todos falam qualquer coisa, o conteúdo vira espetáculo, não substância.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han completa esse quadro ao mostrar como a exigência de performance permanente nas redes nos esgota. Elas não só registram o que fazemos, como nos cobram produtividade emocional constante, opinião sobre tudo, presença em todos os debates e resposta imediata a qualquer provocação. Disso vem um cansaço difuso, que combina burnout, culpa e a sensação de que nunca estamos à altura do padrão de felicidade exigido nas telas, criando uma sociedade deprimida e ansiosa, que busca no ódio digital uma válvula de escape.
Quando dicionários escolhem termos que denotam raiva e ilusão como símbolos do ano, fica claro que esse novo regime digital é patológico. Assim, Eco estava certo ao temer a diluição da autoridade intelectual, pois a raiva brilha mais do que a sensatez.
Talvez a decisão da Austrália seja um exagero sob a ótica da liberdade individual, mas pode ser o alerta que o resto do mundo se recusa a ouvir. Bauman dizia que o medo se tornara ubíquo e difuso em nossos tempos. Portanto, nosso desafio é resgatar o compromisso com o outro, que seja real, ainda que imperfeito e difícil.
A saída para esse labirinto não reside apenas nas canetas dos legisladores, embora a regulação seja urgente e necessária para conter a ganância irresponsável das big techs. Precisamos decidir se estamos dispostos a reconstruir nossas relações para além das telas ou se aceitaremos que a indústria da atenção decida quem amamos, quem odiamos e até o que pensamos sobre nós mesmos.
A resposta não virá de Camberra, Bruxelas, Washington ou Brasília. Nós temos que escolher desligar o celular e olhar nos olhos de quem está ao lado. Precisamos resistir à tentação de transformar discordância em confronto e priorizar a substância sobre a performance. As redes sociais não nos salvarão da armadilha que elas criaram. (Paulo Silvestre/Agência Estado)